SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Há 66 milhões de anos, um grupo de sobreviventes inventou a agricultura para enfrentar o inverno que se abateu sobre toda a Terra -uma longa escuridão provocada pela queda do meteorito que extinguiu a maior parte dos dinossauros.
Essa invenção do cultivo não coube, é claro, a seres humanos, que ainda estavam longe de surgir nessa época, mas a formigas, afirma um estudo internacional com participação de brasileiros. O trabalho, que contou com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), reconstruiu em detalhes as ramificações da “árvore genealógica” de centenas de espécies dos insetos agricultores, bem como a dos fungos que eles aprenderam a cultivar debaixo do solo.
Segundo a pesquisa, o passo a passo da diversificação dos insetos e de seus fungos, um dos mais importantes exemplos de coevolução (evolução conjunta) da história do planeta, encaixa-se de modo bastante consistente com um início durante a extinção em massa que encerrou a Era dos Dinossauros.
Detalhes da análise foram publicados na última quinta-feira (3) no periódico especializado Science. Entre os autores do estudo está um quarteto de pesquisadores ligados ao Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro, no interior de São Paulo. Pepijn Kooij, André Rodrigues, Quimi Montoya e Mauricio Bacci Júnior assinam o trabalho junto com outros pesquisadores do Brasil e do exterior.
Apesar da tremenda importância ecológica e econômica da agricultura praticada pelas formigas -em especial no caso das saúvas, cujo impacto histórico como praga agrícola no Brasil é registrado desde ao menos o século 19-, ainda havia poucos dados sobre o parentesco entre os diferentes tipos de fungos que elas “plantam” nos formigueiros.
Essa é uma das principais lacunas preenchidas pelo novo trabalho, que usou mais de 2.000 regiões do DNA de quase 500 espécies de fungos para montar um “álbum de família” evolutivo, combinando com uma árvore evolutiva similar com 276 espécies de formigas.
É muita coisa, sem dúvida. A enorme massa de dados comparativos, contudo é necessária porque não existe um único tipo de agricultura praticado por formigas, mas quatro formas distintas.
Todos os fungos cultivados pertencem ao grupo denominado Agaricales, e os insetos agricultores, a grupos de formigas também aparentados. Porém há diferentes níveis de complexidade no “plantio”.
Um dos subgrupos de formigas cultiva fungos semelhantes a leveduras (como as do fermento biológico usados pelos seres humanos); há ainda as que consomem os chamados fungos corais (que lembram uma versão em miniatura dos invertebrados marinhos); e há, por fim, a chamada agricultura superior, com fungos extremamente especializados para fornecer nutrientes e a estratégia de cortar folhas frescas de plantas e usá-las como substrato para o cultivo. Essa é a versão da prática adotada pelas saúvas.
O fato de que tanto a origem das linhagens de formigas cultivadoras quanto a de fungos “plantados” convergem para a época do sumiço dos dinossauros não avianos (ou seja, excluindo as aves, que também são dinossauros) provavelmente tem um motivo simples: fungos não precisam de luz solar para crescer, ao contrário dos vegetais.
Precisam apenas de matéria orgânica que eles consigam decompor, e isso havia em abundância no mundo pós-apocalíptico daquela época. A ideia é que as formigas reuniam essa matéria orgânica em seus ninhos e os fungos ancestrais usavam seu arsenal bioquímico para digeri-la, permitindo que os insetos se alimentassem do produto desse processo.
Antes disso, porém, era preciso que a relação entre as espécies se estabelecesse. Segundo Pepijn Kooij, o início pode ter sido acidental.
“Podemos imaginar que as formigas estavam trazendo material vegetal para comer dentro de seus ninhos, criando um estoque. Tal como acontece na agricultura humana, esse acúmulo vai atrair pragas, assim como um celeiro de trigo vai atrair ratos”, compara ele. “Provavelmente fungos começaram a crescer ali, e as formigas passaram a comer os fungos.” Em alguns casos, a coisa deu tão certo que os insetos passaram a propagar os antigos invasores.
Os pesquisadores identificaram ainda uma provável fase de aumento da complexidade da agricultura de formigas há 27 milhões de anos, na América do Sul, quando surgiu o cultivo mais elaborado das saúvas.
Trata-se de uma fase de clima mais seco, com perda de florestas fechadas. Com o aumento das savanas (ancestrais do atual cerrado e outras áreas abertas), as protosaúvas teriam selecionado fungos antes adaptados ao crescimento na umidade das florestas tropicais, tornando-os totalmente dependentes do crescimento dentro de seus formigueiros.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress