Quem é Clayton Nascimento, ator que verteu o racismo em peça e agora estrela novela

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Na noite de 18 de fevereiro de 2018, Clayton Nascimento saía de um cinema na rua Augusta em direção à avenida Paulista. O trajeto, trivial para tantos jovens paulistanos, cinema-ônibus-casa, seria também para ele. Era o que imaginava até um casal branco apontá-lo como responsável por um assalto.

“Você está me confundindo”, ele disse. Na sequência, outra mulher fez a mesma acusação. “Eu só quero ir para casa”. E outra pessoa. “Eu estou com meu RG”. Quando viu, eram nove acusadores. E veio a agressão. “Eu não consigo respirar.”

Ao acordar, estava machucado, com as costelas trincadas e sem seus pertences. As diversas acusações contra o jovem negro de 29 anos que voltava do cinema, na verdade, não passavam de um artifício para assaltá-lo. Ele levou meses para se recuperar fisicamente. “Nunca mais andei na rua depois das 18h30”. Nem andou de ônibus. Mas decidiu: “Preciso transformar isso em arte.”

À época estudante da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo -onde ingressou na turma com mais alunos pretos que já houve no tradicional centro de formação teatral, com 12 de 20 alunos-, Nascimento circulava com seu solo “Macacos” por São Paulo.

Apresentou a peça para colegas do CRUSP -o conjunto habitacional dos estudantes da USP-, pela Praça da Sé e do Relógio e churrascos de amigos até conseguir um edital público, em 2022. O monólogo, que começou com 15 minutos, hoje tem três horas de duração.

Engana-se quem pensa que se trata tão somente de um espetáculo-denúncia, como pode parecer à primeira vista pelo título, ou ao se ver diante do palco um rapaz negro de bermuda de tactel e chinelo de dedo.

No palco, sua experiência se une à de outros personagens negros -de Bessie Smith a Elza Soares, passando por Terezinha Maria de Jesus, a mãe do menino Eduardo, morto em 2015 no Morro do Alemão, até família real brasileira. Com isso, o ator se propôs também a uma forma de delírio, unindo o que as coisas são, foram e poderiam ser -de bom e ruim.

Deu certo. Aos 34 anos, Nascimento acumula, por “Macacos” -que estrela, escreve e dirige-, um prêmio APCA e um Shell, o mais importante do teatro brasileiro. Os 2.500 ingressos da temporada no Rio de Janeiro esgotaram em 36 horas. Na plateia, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Andrea Beltrão e outros nomes.

Nascimento deixa agora o monólogo para viver seu primeiro papel em uma telenovela, “Fuzuê”, que estreia na faixa das 19h na Globo em 14 de agosto. “Eu estava em busca de um personagem com nome e sobrenome”, diz.

Viverá o costureiro Caíto Figueroa Roitman. Isso mesmo, com sobrenomes de duas clássicas vilãs da teledramaturgia -a Laurinha, papel de Gloria Menezes em “Rainha da Sucata”, e a Odete de Beatriz Segall em “Vale Tudo”. “É um costureiro dotado de ideias para outros personagens saírem de enrascadas”, afirma.

Filho de uma noveleira, o ator quer viver por inteiro a experiência de uma obra do gênero. Sua mãe, Maria do Carmo Vieira Santos Nascimento, pouco antes de morrer, em 2020 com Covid-19, estava preocupada com seu futuro após ter escolhido ser ator e educador no Brasil. “Disse isso no início da semana. Na sexta, [a escola de artes] Célia Helena me ligou para trabalhar como professor. Na terça, ela morreu.” Daí, ele nunca mais parou.

Nascimento se define como “piauílistano”. O pai, Crispim Dias do Nascimento, morto em 2012, e a mãe migraram para São Paulo no “boom” imobiliário da década de 1980. O pai era encanador e depois foi para o setor de comércio e a mãe, manicure.

O ator cresceu em Divineia, na periferia no extremo sul paulistano. Estudou em colégio público até o ensino médio. De um deles, batizado em homenagem a Machado de Assis, se orgulha muito, pois é fã do bruxo do Cosme Velho, que cita em “Macacos”. “Dom Casmurro eu sei demais. Ele me inspira antes de eu saber que ele era preto.” A estrutura do romance, aliás, auxiliou na carpintaria dramatúrgica do espetáculo.

A partir do ensino médio, estudou como bolsista numa escola particular. A formação teatral, que ocupa todo o segundo ato da peça, assim como seu período da USP, das graduações ao mestrado, também foi com bolsa, no Célia Helena, pelo que é grato à atriz Lygia Cortez. “Sou filho das escolas públicas e das bolsas de estudo.”

Fora de casa recebia a formação técnica e cultural teatral. Leu de tudo: os gregos, Shakespeare, Molière, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos. A formação, porém, não se resumia a isso. Em casa, a mãe, fã de televisão, lembrava das grandes atrizes. “Elogiava a partir da história delas. Gostava da Ruth de Souza, da Neuza Borges, da Marieta Severo, Regina Casé.”

Clayton dedica parte do monólogo ao Teatro Experimental do Negro, um dos grandes momentos da modernização do teatro brasileiro, e a duas atrizes em especial -Ruth de Souza e Léa Garcia, a quem conheceu no dia em que recebeu o APCA. Na mesma ocasião, esta, aos 90 anos, foi homenageada por sua trajetória.

O pai, por sua vez, era conhecido no bairro pelas histórias que contava. E, sem nunca ter estudado teatro, conhecia intuitivamente uma técnica teatral. “Meu pai falava: ‘você tem que colocar o corpo para contar uma história’.”

Nascimento incorporou a lição burilada ao longo de mais de 20 anos. Durante as três horas de espetáculo, não há um segundo sequer em que corpo e voz tenham qualquer dissonância nos múltiplos personagens que ele desempenha no palco.

“Passei anos tentando descobrir como me inserir na dramaturgia com histórias de outros povos, outras nacionalidades, outros costumes e quando olhei para a história do povo brasileiro, dos povos periféricos, foi quando eu obtive meus maiores êxitos artísticos. Entendi que meu olhar era para a gente mesmo.”

DANILO THOMAZ / Folhapress

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