VANCOUVER, CANADÁ (FOLHAPRESS) – Depois de três décadas de trabalho para proteger 15 milhões de acres de terras e reintroduzir dezenas de espécies na Argentina e no Chile, a ambientalista filantropa Kristine McDivitt Tompkins acha que tudo isso é ainda muito pouco. A californiana de 73 anos está agora de olho em todo o continente, a começar pelo Brasil.
Tompkins, que largou a vida corporativa nos anos 1990 para se dedicar à região, quer ajudar na criação de corredores ecológicos internacionais partindo dos rios do cone sul até o norte.
Ela esteve no Brasil em março para se encontrar com brasileiros de organizações ambientais, que organizaram uma reunião com a ministra de Meio Ambiente, Marina Silva.
Versada no espanhol, de fala mansa e estrutura miúda, Tompkins tem um aperto de mão forte e visão focada. Sua bandeira é a restauração da fauna e flora, ou “rewilding” como diz em inglês, trazendo de volta a vida selvagem para terras que precisam ser recuperadas ou protegidas.
Foi o que fez com a onça-pintada e o tamanduá-bandeira no nordeste da Argentina e com emas e cervos huemul no sul do Chile.
“Temos orgulho do que fizemos no Chile e na Argentina, mas não é rápido e nem grande o suficiente para o impacto que precisamos ter hoje”, disse Tompkins à reportagem após apresentar seu segundo TED Talk, em Vancouver, em abril.
“E o Brasil é o centro desta história, porque tem uma biodiversidade enorme. Queremos achar os parceiros certos e trabalhar com os governos, porque, caso contrário, não dá certo.”
A organização de Tompkins, fundada com seu marido, Douglas Tompkins (1943-2015), criou e expandiu 15 parques nacionais do Chile e Argentina, após o casal comprar terras, montar infraestruturas e repassá-las aos governos. Foi a maior doação de terras particulares da história, de acordo com os envolvidos.
A ação inspirou brasileiros, como Mario Haberfeld, fundador do Onçafari, uma ONG que atua em várias regiões do país e tem base em Mato Grosso do Sul.
Com outros seis brasileiros, incluindo os conservacionistas Teresa Bracher e Roberto Klabin, Haberfeld iniciou em 2020 a Associação Aliança 5P, que hoje engloba 13 propriedades rurais no sul do Pantanal, num total de 346 mil hectares.
“Os Tompkins foram uma inspiração, e nós adaptamos o modelo deles”, disse Haberfeld, cuja instituição dedicada à onça-pintada e ao lobo-guará já gastou R$ 120 milhões em compras de terras desde 2019. “Criamos fundos de perpetuidade para manter e administrar essas terras e criar grandes corredores ecológicos. Já temos quatro.”
Haberfeld, Bracher e Klabin se encontraram com Tompkins em março e a apresentaram à ministra Marina Silva. O grupo mostrou ao governo brasileiro as propostas de corredores ecológicos internacionais, conectando as bacias dos rios Paraná e Paraguai, perto do Parque Nacional Iberá, em Corrientes (nordeste da Argentina), com o norte do Pantanal, passando por Bolívia e Paraguai.
O projeto já tem até um mascote simbólico desta parceria sem fronteiras: a onça-pintada Jatobazinho, resgatada ainda filhote em estado crítico de saúde no pátio de uma escola rural no Pantanal de Corumbá (MS), em 2018.
Reabilitado, o animal foi reintroduzido quatro anos depois ao parque argentino Iberá, com ajuda do Onçafari e da Rewilding Argentina, ONG independente ligada à Tompkins Conservation. Como primeira onça-pintada macho do parque, Jatobazinho virou pai de 13 filhotes. E um deles acabou indo parar no Paraguai.
“O Paraguai recebeu esse animal como se fosse a chegada de Cristo. Foi maravilhoso. De repente, eles fazem parte desta história também”, disse Tompkins, contando que o animal foi filmado por pescadores e as imagens viralizaram no país.
“O governo está interessado nos corredores, embora o país não tenha indivíduos tão envolvidos como no Brasil.”
Para ela, Jatobazinho provou a premissa da necessidade da grande escala do projeto. “As onças-pintadas precisam se dispersar, mesmo habitando um parque com 1,8 milhão de acres de zonas úmidas”, disse, sobre o parque Iberá. Até 1999, ele era pequenas áreas selvagens cercadas por fazendas de gado.
“Se as onças não conseguem, nós falhamos. E elas vão acabar sumindo como nos anos 1930.”
Tompkins lamenta ter demorado tanto para conhecer melhor o Brasil. “Quando você começa algo do zero, não espera que todos esses milhões de acres serão insuficientes. Por isso demoramos a chegar ao Brasil”, disse.
Foi em Porto Jofre (MT), no Pantanal, que ela viu sua primeira onça-pintada, dez anos atrás. “Chorei de emoção.”
JIU JITSU CAPITALISTA
Tompkins cresceu num rancho no sul da Califórnia e morou uns anos na Venezuela quando criança, acompanhando o pai, que trabalhava nos campos de petróleo recém-descobertos.
Sua carreira decolou quando foi ajudar o amigo alpinista Yvon Chouinard a fundar a marca de roupas Patagonia, da qual foi uma das seis primeiras funcionárias e CEO por 18 anos.
Mas ela deixou o posto e se aposentou aos 43 anos (e ainda terminou um noivado) para seguir um novo amor na Patagônia de verdade, no Chile, onde morava seu futuro marido, o alpinista e magnata norte-americano Douglas Tompkins.
Cofundador das marcas North Face e Esprit, Douglas havia largado os negócios anos antes para se dedicar ao meio ambiente, apaixonado pelas colinas da região.
Isolados numa cabana na costa sul do Chile, os dois passaram a comprar terras no país de modo a assustar os locais. Foram xingados de “barões ecológicos” e “latifundiários” nos jornais e viraram alvos de loucas teorias conspiratórias.
Receberam até ameaças de morte, principalmente quando passaram a combater a indústria de salmão.
“Hoje, eu entendo exatamente o que aconteceu. Mas na época éramos um pouco ingênuos. Talvez muito ingênuos”, disse.
Tompkins afirma que ela e Douglas investiram pessoalmente US$ 364 milhões (cerca de R$ 1,8 bi) em terras, infraestrutura e campanhas no Chile e Argentina desde 1989, sem contar os US$ 100 milhões (R$ 515 milhões) levantados em doações.
No total, a Tompkins Conservation adquiriu 1,8 milhão de acres, doados aos países com a contrapartida de que os governos aumentassem os territórios com terras federais, chegando assim a 15 milhões de acres protegidos nos dois países.
Ela apelidou a estratégia de “jiu jitsu capitalista”.
“É muito simples. Quando largamos a vida corporativa, tínhamos dinheiro, e Doug tinha muito mais que eu”, disse Tompkins. “Decidimos investir e otimizar esses bens e tudo o que rendia colocávamos para reparar os danos que as empresas causam à mãe natureza.”
“Sou muito grata aos meus anos de executiva. Aprendi muito. Os negócios te deixam mais dogmático e meio incansável em termos de planejamento, execução de orçamentos e todas essas coisas que nos permitem trabalhar mais rápido e com mais precisão”, disse.
Douglas morreu em 2015 num acidente de caiaque no Chile, aos 72 anos. A tragédia quase paralisou sua mulher e é contada no documentário “Wild Life” (2023), sobre a vida filantrópica do casal, dirigido pela dupla Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin (Oscar por “Free Solo”).
A reportagem conversou com Tompkins em Vancouver, onde ela deu um TED Talk sobre seu trabalho e a importância dos corredores ecológicos na América do Sul, usando os rios da região como “pontes naturais” e “estradas selvagens”.
Sua palestra foi uma das poucas, durante os cinco dias de evento, que não tocaram no assunto inteligência artificial, um tema que cansou muitos ouvintes e a própria ambientalista.
“Não dá para negar que a IA está trazendo coisas boas […] mas é preciso equilibrar com as desvantagens, fazer sinais de alerta. Ninguém parece querer fazer isso aqui”, disse Tompkins. “É bom para o meio ambiente? Não vejo um benefício direto. Não resolve a questão do consumo, não protege mais territórios.”
Aos 73 anos, ela sabe que talvez não veja o resultado final dos corredores ecológicos entre países, um projeto audacioso que pode levar décadas. “Mas não tem problema”, afirmou na sua palestra.
“Como nos disse um amigo querido e muito inteligente, se o trabalho da sua vida pode ser finalizado em vida, você não está pensando grande o suficiente.”
FERNANDA EZABELLA / Folhapress