SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Há escritores medíocres aos bocados, Maria. Mas está cada vez mais difícil encontrar alguém com talento para passar uma camisa do jeito que você passa.”
Maria Expedicionária, a protagonista do romance “O Céu para os Bastardos”, ouve isso do figurão que a emprega como faxineira quando confessa sua vontade de escrever um livro. Sua autora, Lilia Guerra, escutou sugestão parecida de alguém bem mais próximo.
Foi de uma meia-irmã que ela demorou muito para saber que existia. A escritora tinha mais de 15 anos quando descobriu a identidade do pai, depois que a mãe enfim capitulou aos seus pedidos insistentes. Entregou à garota uma pilha de cartas afirmando que ali estava “a história toda” –de como Lilia foi fruto da relação de uma adolescente vulnerável com um homem casado de 76 anos.
A mãe, Ana Júlia, nunca soube que fim tinha levado o pai. A escritora foi então puxando o fio das pistas, mas nunca chegou a conhecer o homem, que morreu nos anos 1980. Conheceu, contudo, sua família rica e relutante.
“Escrever um livro não é para qualquer um”, disse a irmã a Lilia após saber que as duas compartilhavam ambições literárias além de um pai, quando a jovem contou que queria romancear a vida de Ana Júlia –e, enfim, martelar um ponto final naquela história.
O repórter comenta com a autora que, na cena do romance, ela escolheu tirar as palavras de desprezo da boca da irmã e pôr na de um escritor famoso. Ela aperta o lábio de baixo para cima e confirma com a cabeça. “É legal fazer isso, né?”, diz. “Você se sente mais à vontade para falar.”
Não precisou nem de meia hora para Lilia Guerra contar, afável e hospitaleira, toda essa intimidade à reportagem que a visitava na casa onde mora há 24 anos no bairro de Cidade Tiradentes, em São Paulo.
Era uma tarde de sol tórrido de segunda-feira, um dia em que a autora sabia que podia dar a entrevista com calma, porque estava de folga. Escutava tranquila, da mesa da cozinha onde conversava com o repórter, sambas de Clara Nunes, Beth Carvalho e dona Ivone Lara.
Guerra trabalha 30 horas por semana como auxiliar de enfermagem no sistema público de saúde. Há poucos meses, teve aceito seu pedido para deixar o posto no Itaim Paulista e ir para Guaianases, mais perto de onde mora. “Agora se o ônibus for direto é para dar só 20 minutos, mas teve dia que já levei uma hora.”
É na condução que surgem grande parte de suas inspirações literárias, espremidas nas brechas de uma rotina pesada que não a impediu de produzir volumes de crônicas, os aclamados contos de “Perifobia” e os romances “Rua do Larguinho” e “Amor Avenida” –o que surgiu da história da mãe–, todos publicados pela independente Patuá.
Agora, aos 47 anos, está pegando mais leve no batente e mais pesado na literatura –uma escolha que tem rendido frutos. O novo romance, “O Céu para os Bastardos”, está saindo por uma editora maior, a Todavia.
O título já adianta como a experiência familiar de Guerra alimentou algo do livro. Quando criança, ela pedia à mãe para fazer aulas de catecismo –várias amigas iam e ainda ganhavam lanches gostosos. A resposta da mãe era sempre a mesma. “Como, menina, se você não tem pai?”
Uma das cenas mais comoventes do romance acompanha uma mulher, que também engravidou e foi rejeitada por um homem casado, contando para a filha de quando ela era bebê e ficou doente.
“Quando encostei a cabeça na tua testinha e senti aquela quentura, pedi a Deus pra que te salvasse. Mas lembrei que, segundo o santo padre, aquele Deus dele não te queria. Fui pra rua desatinada, com você nos braços.” Quem a ajudou, no fim, foram duas mães de santo.
Na toada de todo o projeto literário de Guerra, o livro é um mosaico opulento da vida nas periferias. Há uma mulher que vê a filha ser morta na sua frente por cobrança de uma dívida do marido; há um rebuliço no ônibus em reação a um homem assediador; há rodas de samba, gambiarras, falcatruas e companheirismo.
Tudo é narrado por Maria Expedicionária, uma mulher de muitos nomes. Na comunidade, ela é Sá Narinha. Na terra onde nasceu, era Mariinha. Para o filho da patroa, com quem tem uma relação afetuosa, é Xispê. E “no bairro dos bacanas”, escreve ela, “não passo de mais uma Maria vestindo o uniforme azul-marinho”.
Guerra já trabalhou como empregada doméstica antes da enfermagem, assim como sua mãe e avó. Segundo ela, era como um “rito de passagem” em sua família –um de que suas filhas Barbara e Thaís, que trabalham com recursos humanos e comunicação, foram poupadas.
A escritora comenta que já ouviu de editores que seus livros têm gente demais. Para isso, tem uma resposta pronta. “O livro para mim é um ônibus, um vagão de trem. Enquanto couber mais um, eu vou colocando. Não quero perder a oportunidade. Sei lá quantos livros mais eu vou escrever. Sei lá se eu estou viva de noite.”
E faz questão que todos esses personagens levem nome próprio. “A gente já não tem nome, quase nunca. É a moça do café, a tia da limpeza, a moça da merenda. Quero que as pessoas tenham nome, rosto, história.”
Mas tudo é puxado pela trama de Sá Narinha, uma personagem de fascinante complexidade que se apresenta aos leitores sonhando em largar o emprego e encurvando seus ombros em culpa e ódio pelo filho que pôs no mundo.
As razões da postura anti-maternal se revelam conforme o livro avança, mas sempre mantêm algo de inescrutável. E fica evidente o quanto o romance de Guerra é composto de fabulação, ultrapassando o registro autobiográfico.
“A Sá Narinha é uma das personagens mais misteriosas para mim”, diz sua autora. “Não sei de onde ela veio. Com a Preta, a Piti, da ‘Rua do Larguinho’, com as meninas, é algo muito próximo. A Sá Narinha é como se fosse uma pessoa que eu sei alguma coisa, mas não tanto.”
Guerra fala de suas personagens como se fossem amigas, o que se espelha no seu processo criativo. Enquanto tirava uma horinha no trabalho para escrever e ouvia alguém caçoando dela, diz que fazia “que nem a Carolina”, se referindo à Maria de Jesus: “Olha que eu te ponho no meu livro!”. Sua obra é composta dessa ousadia carinhosa.
Em “O Céu para os Bastardos”, ela dedica alguns parágrafos para contar de uma moça que queria herdar os sapatos da patroa morta para ir dançar no baile. “Seus pés eram maiores que o da defunta, no entanto. Os sonhos nem sempre cabem na gente.”
Só que, às vezes, cabem.
O CÉU PARA OS BASTARDOS
Preço: R$ 54,90 (176 págs.); R$ 36,90 (ebook)
Autoria: Lilia Guerra
Editora: Todavia
Lançamento: Quarta (20), às 18h, no Bar da Dona Tati, em SP
WALTER PORTO / Folhapress