SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Além de ser um ato de solidariedade e uma proeza da medicina, a doação de órgãos para transplante é uma façanha logística. Um rim dura aproximadamente 36 horas fora do corpo humano. Um fígado, 12. Um pulmão, no máximo seis. Um coração, apenas quatro. É preciso, portanto, correr contra o tempo para garantir que todas as etapas aconteçam no momento certo e que os órgãos de um doador cheguem até quem vai recebê-los –que pode estar em outro bairro, outra cidade ou até outro estado do país.
Do momento em que se detecta um potencial doador à cirurgia de transplante, muita coisa tem que acontecer para que o procedimento dê certo. É preciso conversar com a família do paciente que teve morte encefálica para verificar se autoriza a doação, notificar a Central Estadual de Transplantes, realizar a cirurgia para a retirada dos órgãos, acondicioná-los em caixas apropriadas, transportar cada um deles até os locais onde estão os receptores e, por fim, fazer a cirurgia em cada um deles. Tudo isso em um prazo que pode ir de 12 a 48 horas, dependendo do órgão que será transplantado.
Esse processo extremamente complexo envolve dezenas de profissionais de diferentes especialidades: cirurgiões, anestesistas, patologistas e outros médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, psicólogos, funcionários administrativos, motoristas, pilotos e até policiais ou bombeiros que, em alguns casos, são chamados para abrir passagem para a ambulância durante o transporte.
A Folha conversou com três pessoas que trabalham em diferentes momentos desse fluxo: uma enfermeira especialista em acolher famílias de potenciais doadores, um motorista de ambulância de um hospital cardíaco e uma cirurgiã especializada em transplantes. Eles contaram como é sua rotina, como lidam com o estresse inerente à função e o que os motiva a trabalhar na área.
Enfermeira especialista em conversas difíceis
Trabalhando na área de transplantes desde 1999, a enfermeira Neide Knihs, 52, é uma especialista em conversas difíceis. Desde que passou por um treinamento de comunicação em situações críticas na Espanha, em 2010, ela se tornou uma referência de como agir em um momento delicado: o de comunicar a morte encefálica de um paciente a seus familiares e buscar a autorização deles para a doação de órgãos e tecidos.
Segundo Knihs, pesquisas mostram que mais de 80% dos brasileiros são favoráveis à doação de órgãos. No entanto, a taxa de recusa é alta: 45% na média nacional, chegando a quase 80% em alguns estados.
“Por que a recusa é grande? Um dos fatores é que muitos profissionais não estão preparados para lidar com o processo de luto da família, compreender a hora em que eles aceitaram a morte e se comunicar adequadamente”, afirma ela, que organiza capacitações para ensinar médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais a lidar com essa tarefa. Em Santa Catarina, onde ela mora, a taxa de recusa é de apenas 25%.
Doutora em ciências, Knihs ajudou a implementar sistemas de qualidade nas centrais estaduais de transplantes do Paraná e de Santa Catarina. Também participou da criação de serviços de transplante em dois hospitais. Atualmente, é professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e enfermeira do Hospital Universitário (HU) da instituição.
Um levantamento interno do HU mostrou que, no caso de doações de múltiplos órgãos, de 65 a 70 profissionais são envolvidos em todo o fluxo –da notificação de que surgiu um doador até a saída dos órgãos, ou seja, sem contar o transporte e o transplante.
Um ponto fundamental ao abordar as famílias, segundo Knihs, é “ser verdadeiro desde o primeiro momento”. “Tem que dizer que a pessoa está muito grave, que o risco de morte é muito grande. Assim eles já vão elaborando o processo de luto”, afirma.
Saber a hora certa de tocar no assunto da doação também faz muita diferença. “Você pode ter pressa para acabar o processo, para liberar a vaga na UTI, mas a família está perdendo um ente querido. É outro ritmo, e temos que respeitar o tempo de eles assimilarem as informações, de entenderem que não tem mais jeito mesmo, que mesmo que o paciente esteja quentinho e com o coração batendo, ele está morto porque teve morte encefálica”, diz.
É por isso que, quando ela entra para uma entrevista, já sabe que não tem hora para sair. “Principalmente com famílias de crianças e adolescentes, às vezes é preciso voltar no dia seguinte. Já tive entrevista que durou dois ou três dias. Uma vez, uma médica disse: Preciso da sua decisão. Eu respondi: ‘A senhora decide comigo. Eles não estão prontos. Se eu falar agora, vai dar recusa’. É essa compreensão que os profissionais precisam ter.”
De acordo com Knihs, a comunicação sobre o processo da doação deve ser simples e clara, com uma escuta ativa. “Quando estou com a família, eu me desconecto para escutar. É o momento deles, não é o meu. Aí eles vão tirando as dúvidas, vejo do que eles precisam.”
A enfermeira diz que nunca teve afinidade para trabalhar dentro de uma UTI com os pacientes sedados e que trabalhar em contato com as famílias exige “compaixão, empatia, escuta, coração e alma”. “Eu amo isso. Me sinto acolhendo. Não estou ali pela doação, a doação é uma consequência. Meu objetivo principal é cuidar dessas famílias.”
Motorista condutor de corações
“Prepara tudo, vamos buscar um coração.” O motorista de ambulância João Pacheco, 63, já ouviu essa frase muitas vezes desde que começou a trabalhar no HCor, há 28 anos. Especializado em procedimentos cardíacos, o hospital também realiza transplantes.
Mesmo acondicionado da maneira correta, o coração dura pouco tempo sem irrigação sanguínea. Por isso, Pacheco precisa acelerar. Mas não muito. “Você está levando vidas. Não pode abusar também, sair fazendo besteira. O motorista de ambulância aqui em São Paulo tem que ser muito atencioso.”
Às vezes, ele precisa pegar a estrada para buscar o órgão em cidades próximas. Naquelas mais distantes, o coração viaja de avião. “Eles me avisam: estamos saindo de Manaus agora, por exemplo. Eu calculo o tempo e fico aguardando o pessoal em Cumbica. E aí é ‘pau’ pro HCor.”
Quando o trânsito está pesado e o tempo é escasso, a equipe pede o apoio de batedores da Polícia Militar. Uma vez, Pacheco levou apenas 15 minutos para ir da base aérea da FAB (Força Aérea Brasileira) em Guarulhos até a região da avenida Paulista, onde fica o HCor –um trajeto de 28 km que geralmente é percorrido em mais do que o dobro desse tempo.
“Parece mentira, mas estava prestes a estourar o tempo do coração. Estava tudo parado, fizemos um caminho diferente e conseguimos chegar. Mas quando chega, o motorista fica até com tremedeira”, conta.
Para trabalhar na função, é preciso fazer um curso de condutor de veículo de emergência e, a cada três anos, passar por uma reciclagem. Mas, segundo Pacheco, o preparo mais necessário é o mental, para manejar o estresse.
“Tem motoristas que não saem da frente, não respeitam. Eles não sabem o que tem dentro da ambulância, às vezes acham que a gente liga a sirene porque está com pressa de almoçar ou ir embora. É isso que estressa”, reclama.
Ex-bancário, ele diz que passou a dar mais valor à vida depois de transportar tantas pessoas doentes. E se orgulha muito do seu trabalho atual. “Me sinto realizado quando penso em quantas pessoas transportei, quantas vidas eu salvei.”
Médica com mais de mil transplantes no currículo
Primeira mulher da América Latina a realizar um transplante de fígado, em 1991, a cirurgiã Ilka Boin dedicou quase metade de seus 71 anos de idade a esse tipo de operação. E segue na ativa: professora titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), ela coordena a unidade de transplante de fígado do Hospital das Clínicas e precisa ficar de prontidão para agir rápido quando aparece um órgão compatível com algum paciente.
“Ligam para mim a qualquer hora. Estou há 33 anos assim, online o tempo todo”, conta. Segundo ela, por ser uma cirurgia de emergência, a equipe de transplante tem que estar disponível “365 dias por ano, sete dias por semana, 24 horas por dia”.
Em muitas situações, a cirurgiã precisa viajar para outras cidades ou estados para fazer a retirada dos órgãos, transportá-los e, quando volta para Campinas, realizar o transplante no receptor.
A equipe faz questão de agradecer às famílias dos doadores. “Eles gostam de ver a caixinha [com o órgão] passar, é gratificante. A gente agradece pelo ato de generosidade, abraça a família. No centro cirúrgico as enfermeiras fazem uma oração. É muito bonito”, diz.
Formada em cirurgia geral e hepática, Boin acompanhou o desenvolvimento da área de transplantes no país, puxado pela melhoria dos medicamentos imunossupressores, que evitam a rejeição ao novo órgão. Inicialmente, na década de 1980, ela fazia o procedimento de forma experimental, em animais. “Não tinha onde treinar”, diz.
Depois, fez alguns estágios nos Estados Unidos, na Espanha e na França, até que começou a trabalhar para valer com o procedimento no Brasil. De lá para cá, já fez mais de mil transplantes.
Segundo ela, coordenar o detalhado fluxo de doação e transplante, com limitação de tempo e as longas distâncias a serem percorridas no território brasileiro, é “pura adrenalina”. “Acho que é melhor pular de asa-delta”, brinca.
O esforço é recompensado pela alegria de devolver a possibilidade de vida aos pacientes. “Tenho uma paciente com 32 anos de transplante que está viva, sadia.”
Um encontro, em especial a emocionou. “Estava na formatura do meu sobrinho e vi um homem tão bonito, com um jeito garboso. Ele chegou para mim e disse: ‘Professora, quero te agradecer. Há dez anos, fiz um transplante e hoje pude estar aqui, na formatura de engenharia do meu filho’.”
Por enquanto, Boin não pensa em parar. “Vou ficar enquanto achar que posso colaborar com algumas coisas. Minha função agora é formar novos talentos que vão continuar esse trabalho.”
Tempo de isquemia* de cada órgão
*tempo aproximado de duração do órgão sem irrigação sanguínea
– Córnea: 7 dias
– Rim: 36 horas
– Pâncreas: 20 horas
– Fígado: 12 horas
– Pulmão: 4 a 6 horas
– Coração: 4 horas
FLÁVIA MANTOVANI / Folhapress