PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – No início dos anos 1990, quando a Primeira Intifada se encaminhava para o fim, Joe Sacco partiu para a região disputada por israelenses e palestinos para entender o que se passava e desenhar o que visse.
O resultado foi “Palestina” (Veneta, 2021), que se tornou referência do jornalismo em quadrinhos ao contar a vida na região, especialmente pela ótica dos palestinos. Uma das críticas mais ouvidas foi que ele não havia dado o mesmo espaço ao lado israelense. A resposta do autor é que, por muito tempo, ele viu a cobertura geral pender, com desequilíbrio, para Israel.
Sacco, 63, visitou lugares sob toque de recolher, conheceu pessoas expulsas de suas casas, que perderam filhos, pais e amigos, alguns que narravam prisões e tortura como parte integrada da vida ali, jovens que já decidiam posição política entre as facções e adultos que contavam os últimos centavos numa economia esmagada e dependente de Israel.
Tudo pouco mais de um ano antes da assinatura dos Acordos de Oslo, que estabeleceram condições de paz entre Israel e a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), em 1993.
Trinta anos depois de “Palestina”, com outro livro publicado sobre a região, “Notas sobre Gaza” (Companhia das Letras, 2010), que lembra massacres ocorridos em 1956 em Khan Yunis e Rafah, ele acompanha os eventos do conflito atual nos Estados Unidos, onde vive, com a conclusão que a situação piorou.
Sacco diz estar preocupado com dois amigos que estão em Gaza. Um deles não envia mensagens há alguns dias. O outro manda notícias a cada dois ou três dias. Ele está desesperado, não consegue dormir. Ambos chamaram isso que está acontecendo de genocídio, diz o quadrinista. Um deles está se conciliando com a própria morte. Ele já quis deixar Gaza, mas agora prefere ficar e morrer onde está.”
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PERGUNTA – O sr. publicou “Palestina” há 30 anos. Era o fim da Primeira Intifada (1987-1993), e muita coisa aconteceu desde então. Quantas vezes o sr. esteve em Gaza?
JOE SACCO – Estive lá em 1991-92 e um tempo depois fiz um livro sobre a Faixa de Gaza. Na Primeira Intifada, os confrontos envolviam atirar pedras, tiros disparados por israelenses, com balas de borracha e munição. Na Segunda Intifada (2000-2005), quando eu estava em Gaza, havia drones, não necessariamente jogando bombas, mas vigiando, bombardeios, atentados em Jerusalém e em outras cidades israelenses. O nível de violência havia aumentado e agora é exponencial.
O que notei entre a primeira e a segunda ida para Gaza -a última há 20 anos- é que houve uma grande mudança porque, nesse meio tempo, com os Acordos de Oslo, as pessoas acreditaram que haveria paz. Em boa parte dos campos de refugiados, elas começaram a gastar dinheiro e construir. Quando a Segunda Intifada veio, tudo caiu por terra.
A parte mais triste sobre o primeiro livro que fiz lá não é como as coisas mudaram pouco, mas como ficaram piores. Elas estão exponencialmente piores. Eu estava revendo meu livro e pensando: ali eu falava de algumas centenas de feridos ou mortos durante quatro anos de conflito, de casas demolidas aqui e ali, agora olhe para isso. Milhares de pessoas mortas em um período muito curto de tempo.
P – O que é novo nesse cenário?
JS – Acho que agora há uma espécie de sentimento existencial sobre o que está acontecendo. O povo palestino poderá ficar em Gaza? Quando um governo anuncia que irá cortar água, eletricidade, combustível, quando há pessoas em altos cargos se referindo ao povo de Gaza como animais, comparando o Hamas com nazistas e fazendo disso a razão para matar civis em larga escala, você começa a sentir algo próximo de um genocídio. Daqui a alguns anos, um tribunal talvez diga “bem, isso se encaixa na definição legal desse tipo de coisa”. Está acontecendo agora e diante dos nossos olhos.
O que o Hamas fez é crime, é assassinato, isso é claro. Mas a resposta cria um ponto existencial para os palestinos. Acho que essa é a diferença. E eu acredito que os israelenses, no fundo, também sentem que é um momento existencial para eles. O povo judeu sofreu muito historicamente. Ver tantos cidadãos mortos dessa forma, obviamente é traumatizante. O que o Hamas fez tem que ser julgado pelo que é, mas o que está acontecendo agora parece uma limpeza étnica. Estamos à beira de coisas que não temos ideia de onde irão dar. O problema para mim, como ocidental, é como o Ocidente tem acobertado isso. Quando você ouve Joe Biden falando, ele está se colocando como cúmplice. E está me fazendo cúmplice indiretamente. Ele arrasta meu dinheiro nisso, eu pago impostos nos EUA.
A grande lição do Holocausto é “nunca mais”. E se isso ressoa como acredito que tem que ressoar, significa nunca mais para ninguém.
P – Em “Notas sobre Gaza”, o sr. menciona dois massacres ocorridos em 1956, e cita Al Rantisi, um dos fundadores do Hamas, que tinha então 9 anos e perdeu o tio. Ele diz: “deixou uma ferida em meu coração que nunca pode ser curada” e “eles plantaram ódio em nossos corações”. O que isso diz sobre o que vemos hoje?
JS – Por isso a história é importante. Tudo que as pessoas sentem e a forma como elas julgam têm base em memória histórica. Se você sabe que o seu bisavô vivia em uma aldeia em Israel, foi expulso, tornou-se um refugiado, que o seu avô foi posto contra a parede em Khan Yunis, que algo aconteceu com seu pai em 1967 e ocorre com você agora, você mistura esses sentimentos de desespero, impotência, de que nunca termina.
No caso de Rantisi [assassinado em 2004], o tio foi morto em 1956 no massacre em Khan Yunis por tropas israelenses, e o ódio foi plantado em seu coração. Como isso pode funcionar em 20 anos? Crianças crescendo hoje, pode-se dizer que muitas delas vão ser radicalizadas. Eu não acho que seja do interesse dos palestinos ou dos israelenses.
A questão palestina é como uma casca de ferida que segue sendo arrancada e nunca sara. O trauma será passado adiante, assim como o trauma do Holocausto foi passado para os judeus. É por isso que lemos história.
P – “Palestina” tem a cena de um menino que é deixado na chuva por soldados israelenses, onde essa questão parece ficar pendente.
JS – O conflito todo está ali. Alguém tem poder, alguém não tem. Ele teve que ficar debaixo da chuva enquanto os soldados ficaram sob um toldo. O que ele vai levar consigo? Não sou psicólogo, e gostaria de estudar isso a essa altura. Se não escutam historiadores, escutem psicólogos, talvez eles tenham algo a dizer sobre o que esse tipo de trauma pode evocar no futuro.
P – Em “Palestina” há números do impacto da ocupação israelense na economia palestina, com desemprego de 40%. Por que esse aspecto é importante?
JS – Quando você “desdesenvolve” um lugar, isso também é uma forma de violência. O que você está fazendo é tirando das pessoas sua esperança no futuro, meios de ter uma família e tudo o que tem a ver com dignidade. Não estamos falando apenas de balas, bombas, mas quais são os caminhos para que as pessoas possam viver como eu e você. Você tem que se colocar no lugar dessas pessoas e pensar quão devastador isso é para seu bem-estar emocional e mental. É violento. Mostre-me um lugar em que o desemprego chegue a esses números e me diga que não estamos criando tensões e problemas sociais. Aonde essa tensão levará?
P – Há muitos relatos de que o antissemitismo está em níveis elevados. Como vê isso?
JS – Há pessoas que vão reagir contra as ações do governo israelense, o que é uma crítica legítima, mas em situações de tensão, há quem possa aproveitar isso como uma desculpa para seu antissemitismo. Preocupa-me que esse tipo de coisa possa radicalizar pessoas e gerar ainda mais antissemitismo.
P – Algumas falas em “Palestina” são parecidas com o que as pessoas têm dito nas últimas semanas. Existe solução à vista?
JS – Estou pessimista com o estado das coisas agora. Acho que há pessoas que querem trabalhar por isso, israelenses e palestinos, mas a questão é: vão permitir que eles o façam? Espero que não estejamos sentados daqui a 30 anos tendo essa mesma conversa. Não sei se a solução de dois Estados pode funcionar agora, por causa dos assentamentos [israelenses na Cisjordânia].
Os israelenses costumavam dizer que os assentamentos seriam fatos e eles são mesmo fatos hoje. É muito difícil resolver isso para que haja dois Estados. A solução de um Estado tem lógica, mas as pessoas conseguirão mesmo viver juntas depois desse tipo de violência? Eu gostaria de pensar que sim, mas será muito difícil. É como se tivesse se tornado um problema intratável e existencial para os dois lados.
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RAIO-X | JOE SACCO, 63
Nascido em Malta, formou-se em jornalismo pela Universidade do Oregon e é radicado nos EUA. No fim dos anos 1980, publicou a série de HQs autobiográficas e satíricas “Yahoo”, e entre 1991 e 1992 viajou para Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza, onde entrevistou moradores para o livro “Palestina”. A obra se tornou referência no jornalismo em quadrinhos. Ele também é autor de “Notas sobre Gaza”, “Uma História de Sarajevo” e “Área de Segurança Gorazde”, entre outros.
FERNANDA CANOFRE / Folhapress