Quilombo na BA cria moeda própria para ajudar mulheres e acabar com dívidas

CACHOEIRA, BA (FOLHAPRESS) – Quando as compras do mês excediam o orçamento, as mulheres do quilombo Kaonge, na cidade de Cachoeira (BA), tinham seus cartões do Bolsa Família retidos pelos donos dos comércios locais como forma de garantir os pagamentos.

A prática parou quando a comunidade decidiu criar uma moeda e um banco próprios -respectivamente chamados de sururu e Banco Comunitário Solidário dos Iguapes.

“O vendedor me dizia ‘eu te vendo, mas tu me dá o teu cartão como garantia’. Não tinha outra opção, a gente precisava comer e dar comida aos nossos filhos”, diz a professora Rosângela Viana, 49.

A situação de Rosângela se manteve dessa forma por quase oito anos. Mãe de dois filhos, ela conta que a prática se repetiu com mulheres de todo o quilombo.

Com a criação da moeda e do banco social, foi possível retomar o domínio do próprio dinheiro. Como os empréstimos em sururu são feitos sem juros e os comércios passaram a aceitar a moeda social, as mulheres já não dependiam mais do real.

O montante em sururu recebido nos comércios locais é trocado posteriormente por real pelos comerciantes no Banco Comunitário.

“Nos bancos normais, a gente toma um dinheiro e os juros são altíssimos”, diz Rosângela. “Quando eu peguei a moeda, que fui na venda, paguei o que devia, tomei meu cartão de volta e pude fazer a gestão do dinheiro que recebo, isso para mim foi uma mudança muito grande na minha vida, porque eu sei o que fazer com o dinheiro”.

A agente de crédito Jorlane Cabral, 37, é a responsável pelo cadastro dos moradores e controle dos empréstimos no Banco Comunitário. Segundo ela, a iniciativa trouxe uma série de mudanças para a comunidade. “As mulheres cresceram e aprenderam a ter a sua própria independência”.

O Kaonge tem cerca de 52 famílias, grande parte chefiadas por mulheres. Rosângela e Jorlane também são marisqueiras e apicultoras, atividades que compõem a principal força econômica da região.

O nome sururu foi escolhido exatamente em referência a uma espécie de molusco comum na região. A concha do animal estampa, inclusive, a nota de 5 sururus.

Criada em 2012, a moeda tem circulação apenas interna nas comunidades do Vale do Iguape e sua existência foi comunicada ao Banco Central.

“A gente já tem uma experiência que é ancestralmente reconhecida: logo após a escravidão, nossos ancestrais usavam a moeda deles. Não tinha dinheiro, mas usavam o que a gente chama de moeda de troca”, explica o líder comunitário Ananias Viana, 63, criador do projeto. .

“A gente pega essa experiência e réplica em um novo formato e uma nova modalidade. E aí, cria uma moeda social para circular dentro das comunidades quilombolas”, afirma. Ele diz ainda que os casos recorrentes de dívidas dos quilombolas com os comerciantes foi a principal motivação para a criação da moeda.

Apesar disso, houve dificuldade para implementar o projeto no início, especialmente entre os donos de lojas e mercados locais.

“Há sempre uma resistência, principalmente falando em moeda, em dinheiro, uma pulga atrás da orelha”, diz Inácio Bulcão, 55, comerciante que participou da elaboração da proposta. Segundo ele, cerca de dois anos depois da implantação, o novo dinheiro já havia sido aceito e incorporado à comunidade.

Para as compras, os comércios aceitam pagamentos nas duas moedas, mas a troca só pode ser feita no Banco Comunitário -o câmbio é fixo de 1 real para 1 sururu. O sistema hoje é aceito em todas as 18 comunidades do Vale do Iguape.

“Quando o banco chega na comunidade que se instala, e que os empreendimentos passam a aceitar a moeda social, é que o banco passa a oferecer crédito para gente”, diz Rosângela.

O fundo financeiro do banco é mantido por contribuições de integrantes da comunidade, projetos externos e pelo retorno das atividades turísticas no quilombo.

O montante é usado pelo banco social para oferecer empréstimos à própria comunidade, dando suporte financeiro a quem estiver em necessidade, sempre sem juros.

O banco disponibiliza duas a três linhas de crédito aos clientes. “No momento que as pessoas pagam 300 sururus ou R$ 300, isso retorna para o próprio banco e vai para a mão de outra pessoa”, explica Jorlane.

MARIANA BRASIL / Folhapress

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