SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A publicidade engana, mas diz muito sobre o público ao qual vende os seus produtos. Essa conclusão surge rapidamente em “Oito Cartões-Postais da Utopia”, novo filme do romeno Radu Jude na Mostra de Cinema de São Paulo. Até porque o comercial é a essência do documentário, uma colagem de anúncios veiculados na Romênia durante os últimos 30 anos.
O filme diverte pelo acúmulo desses vídeos todos, que intrigam pela bizarrice. No primeiro comercial, por exemplo, vemos uma guerra de tropas romanas, em clima de épico do nível do filme “300”. Mas a sequência termina na cena insólita de um jogador de futebol qualquer vestido de soldado, bebendo uma Pepsi e anunciando uma promoção da marca.
Os romenos são um paradoxo, como o narrador dessa peça publicitária bem diz, e o longa se aventura nos comerciais para explorar esse lado do povo. A produção se divide em oito capítulos, que organizam os anúncios em temas irreverentes como a história do país, as promessas de riqueza rápida e até as diferentes idades humanas. Tudo isso usando dos comerciais, que são picotados, intercalados e repetidos ao longo da projeção.
O projeto tem um quê inusitado para quem chega agora, mas cai como uma luva na carreira de Radu Jude. O cineasta passou a última década brincando com a história confusa da Romênia, um projeto que já lhe rendeu frutos ele venceu o Urso de Ouro em 2021 pelo filme “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”.
Com “Oito Cartões-Postais da Utopia”, o diretor retomou contato com a publicidade, onde começou a carreira no cinema. Um dos anúncios exibidos no documentário inclusive foi dirigido pelo próprio Jude, que afirma que o projeto o levou a revisitar o lado imediatista do meio.
“O meu primeiro longa, The Happiest Girl in the World, no fundo foi pensado sob o viés utilitário dessa área”, diz o cineasta. “Querendo ou não, essa área diz respeito à minha vida profissional.”
Jude também declara que o projeto o atraiu pela possibilidade de documentar a transição romena para o capitalismo. No fim de 1989, com a morte do ditador Nicolae Ceaușescu, o país encerrou um período de 42 anos sob o regime comunista e se abriu ao mercado.
“Eu estava interessado no tema da publicidade e em como ela abria a vida após a revolução de 1989”, afirma o diretor. “Eu queria entender como esses materiais interagiam ou refletiam a sociedade da época.”
O documentário só saiu do papel quando Jude conheceu o trabalho do filósofo Christian Ferencz-Flatz, com o qual divide a direção do projeto. Professor da Universidade Nacional de Teatro e Cinema, ele pesquisa o audiovisual romeno do período e escreveu alguns ensaios sobre a publicidade do país nos anos 1990, que ajudaram a formatar o trabalho.
“O filme documenta essa transição do país do comunismo para o capitalismo, mas a gente não quis fazer disso uma tese”, diz o filósofo. “O que você vê nos materiais é algo que acontecia na sociedade daquele momento, e a publicidade foi crucial para a entrada do mercado no país.”
“Ao mesmo tempo, a história é muito mais complicada que isso, e já nos anos 1980 existiam peças publicitárias do tipo que hoje se tornaram objeto de pesquisa. Tudo isso fazia parte do momento, e acho que esses anúncios atendiam um desejo do público pelo capitalismo que se materializou na década seguinte.”
Para dar conta de tudo isso, o trabalho da dupla foi longo, durando quase sete anos. Com o apoio de uma produtora e de colecionadores da área, a dupla colheu em torno de 100 horas de material publicitário, que foram reorganizados na duração espremida de 70 minutos do filme.
“Nós assistimos ao material todo algumas vezes e fomos escolhendo o que usar e o que descartar”, diz Ferencz-Flatz. “Nós começamos com um roteiro e uma estrutura de capítulos que mais ou menos correspondia ao resultado final do filme, mas faltavam os materiais. A gente não sabia se nossas ideias funcionariam na prática.”
Mais difícil que a montagem foi encontrar raciocínio coerente em meio a tanta maluquice, porque os tais cartões-postais vão do sonho ao pesadelo em questão de instante. Um dos capítulos da reta final do filme termina com uma família prestes a ser devorada por uma árvore de Natal, por exemplo, e a situação até passa como normal no fluxo dos vídeos.
Esse vale-tudo dos comerciais romenos chamou a atenção dos diretores, mas eles dizem achar mais interessante as reações ao documentário. “Eu mostrei o filme para pessoas de diferentes partes do globo e todas elas reagem chocadas à bizarrice dos anúncios”, diz Ferencz-Flatz.
“O interessante é que isso não é exclusivo da Romênia, mas se relaciona com as diferentes fases do capitalismo de cada país. Elas acontecem em momentos distintos, mas se unem na publicidade.”
Para Radu Jude, esse viés reforça de novo o momento peculiar da história do país. “O lado bizarro traduz uma certa liberdade da publicidade romena da época”, diz ele. “Essa abertura pode produzir coisas burras? Sim, mas como eles eram mais livres, eles também podiam mostrar realidades mais feias da nossa sociedade”.
“Oito Cartões-Postais da Utopia” é apenas um dos filmes que a Mostra exibe este ano de Radu Jude, que não para de trabalhar. A programação também conta com “Sleep #2”, média-metragem mudo que acompanha um dia no túmulo do artista americano Andy Warhol. O romeno ainda acabou de filmar dois novos projetos, incluindo uma versão sua de “Drácula”, que estreiam no ano que vem.
“Eu descobri que eu me sinto melhor e menos neurótico quando eu faço mais ao invés de menos”, diz o cineasta sobre a alta produtividade.
“Acho que tenho uma necessidade de explorar coisas novas com o cinema mesmo quando eles não saem perfeitos. Toda essa diversidade de temas que posso investigar com a linguagem do cinema, quando reunida, é mais importante para mim que trabalhar em apenas um filme.”
OITO CARTÕES-POSTAIS DA UTOPIA
– Quando Mostra de SP – 28 de outubro, às 19h50, no Cinesystem Frei Caneca
– Classificação 14 anos
– Produção Romênia, 2024
– Direção Radu Jude e Christian Ferencz-Flatz
PEDRO STRAZZA / Folhapress