SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre os anos de 2008 e 2012, não importava o dia da semana, o humorista Rafael Cortez, 47, vestia o terno preto, empunhava o microfone, colocava os óculos escuros e saía para gravar duas, três reportagens que seriam (ou não) veiculadas na semana seguinte no programa CQC (Band). Essa rotina estressante atingia ele e os demais repórteres da atração, que fazia bastante sucesso por –na época– ser considerada inovadora e até anárquica.
“Naturalmente, havia um desgaste corporal, mental, comíamos algo rápido. Vivíamos tudo intensamente. Se as entrevistas eram dentro de uma festa, a gente ficava na festa depois. Muitos desenvolveram estafa e [síndrome de] burnout (esgotamento profissional), mas a culpa era muito nossa. O lado bom de ter feito o CQC foi infinitamente maior do que a parte ruim”, diz Cortez ao relembrar os 15 anos da estreia da atração, completados em 2023.
Porém, ao longo dos anos, algumas brincadeiras começaram a gerar ruído com parte do público e houve um desgaste. Cortez lamenta que a TV aberta não tenha aberto mais espaço para uma atração daquele tipo. Segundo ele, se existisse hoje, o CQC continuaria no propósito de bater de frente e denunciar o que está errado, mas sem as mesmas brincadeiras.
“Até as piadas mais incorretas caíam como uma luva no país. Foi uma histeria coletiva”, afirma. “O CQC foi o último respiro do politicamente incorreto”, reforça o apresentador e humorista, que hoje trabalha como palestrante e sonha retomar seus caminhos na televisão, mesmo que seja no próximo Big Brother Brasil. “Eu iria. Manu Gavassi mostrou que uma pessoa com conteúdo pode passar bem por lá.”
PERGUNTA - O ano de 2023 marca os 15 anos da estreia do CQC (Band). O que ficou para você?
RAFAEL CORTEZ – A primeira matéria que foi ao ar foi a minha. O que fica é uma lamúria por não termos hoje na TV nem sequer um genérico do que foi o CQC. Não tenho melancolia, saudade ou algo mal resolvido com o programa, mas dá uma tristeza por um projeto tão interessante e revolucionário não ter dado frutos. Poderia ter continuado na TV e hoje estaríamos com novos talentos.
O CQC existiria hoje da mesma maneira?
R. C. – O CQC é reflexo de um Brasil que não existe mais. O Brasil de 2008 era diferente do de hoje. O programa foi o último respiro do politicamente incorreto. Na cultura argentina (a atração era comandada pela produtora Cuatro Cabezas), as piadas eram encaradas mais facilmente, então começamos a fazer piadas por aqui e as pessoas adoravam. A plateia ria o tempo todo com o que falávamos, até as piadas mais incorretas caíam como uma luva no país. Foi uma histeria coletiva. Se o CQC existisse hoje, estaria completamente à disposição do novo momento do humor no Brasil. E seria muito difícil. Mas ainda existe uma sobra anárquica e uma brecha. Talvez não faríamos as piadas mais incorretas, mas continuaríamos investigando a política, falaríamos com quem não quer falar…
Você considera que estava no auge naquela época?
R. C. – Eu fui treinado para fazer sucesso tarde. Venho de uma família de artistas e todos foram me treinando para que, se em algum momento eu estourasse, mantivesse o pé no chão. O reconhecimento veio quando eu tinha 31 anos no CQC. Sabia que tinha de aproveitar as chances. Tive a sabedoria de guardar uma grana e ter um patrimônio. Qualquer pessoa entre 30 e 40 anos tem que trabalhar que nem louco mesmo e eu fiz isso.
Ficou rico trabalhando no programa?
R. C. – Não fiquei rico nem sou rico, mas sem dúvidas melhorou muito e mudei a vida de quem eu amo. O CQC foi uma vitrine para o stand-up comedy, todos nós repórteres fazíamos isso em 2010. Estávamos em um momento incrível e fomos beneficiados pela enorme visibilidade do programa. Eu, até então, era um artista da Vila Madalena, que vivia com um violão nas costas e tocava em restaurante. Foi uma revolução.
Como era a convivência entre os repórteres? Rolava briga?
R. C. – Era tudo muito bom, de verdade, a gente não convivia muito, ao contrário do que as pessoas pensam. Éramos workaholics, gravávamos muito, até mais material do que entraria no ar, sempre jogavam fora três, quatro reportagens gravadas. Eu tinha o apelido de golfinho e não me irritava. Um dia comentei isso com o [Marcelo] Tas, que tive uma namorada que dizia que eu tinha pele sedosa, e ficou esse apelido.
Com tanto trabalho e pressão, como ficava o seu lado emocional?
R. C. – O que apertava era a rotina. Naturalmente, havia um desgaste corporal, mental, a gente gravava três matérias num dia, comia algo rápido, fast food, e isso era cinco vezes na semana. Nós vivíamos tudo intensamente. Se as entrevistas eram dentro de uma festa, a gente ficava na festa depois. Muitos desenvolveram estafa e [síndrome de] burnout (esgotamento profissional), mas a culpa era muito nossa por abdicarmos de comer e descansar. O lado bom de ter feito o CQC foi infinitamente maior do que a parte ruim. Conheci 11 países, comprei minha casa, conheci gente sensacional e cobri eventos que sempre sonhei.
Não há nada que queira apagar da memória?
R. C. – O pior episódio que aconteceu comigo foi quando eu entrevistei a Maria Bethânia, que eu amo e considero uma deusa, e fiz uma piada que saiu num contexto que a desagradou. Ela me deixou falando sozinho. Pedi desculpas para a empresária, escrevi uma carta aberta para ela. Após três anos, ainda como repórter, eu a encontrei e ela me deu uma nova entrevista. Nunca me perdoei por essa piada, que não foi exibida. Pedi para a edição cortar.
No tempo em que entrevistava políticos e celebridades, pegou birra de alguém?
R. C. – Ao longo dos anos eu entendi que os entrevistados mais chatos são chatos com todos, não só comigo. E quem era legal conosco também era gente fina com a Folha, com o TV Fama. Mesmo na época em que fui trabalhar no Vídeo Show (2016-2018), os malas continuavam sendo os mesmos e são conhecidos.
Tinha muita falsidade nesse meio?
R. C. – Eu percebia que existia uma força maior por parte de celebridades e políticos de tentar fazer parte daquele jogo, pois pegava mal não gostar do CQC. Nossa base de fãs era muito grande e barulhenta. Lembro de assessores cochichando e ensinando parlamentares a falar com a gente. Alguns famosos não nos suportavam, mas faziam um enorme esforço para dar entrevista. O CQC era tão popular que não era legal manchar a imagem. O Paulo Betti deu uma resposta atravessada para o Oscar Filho e fizeram da vida dele um inferno depois.
O que tem feito hoje?
R. C. – Estou apaixonado pelo produto que criei, que é uma palestra sobre atitude transformadora. Ministro esses bate-papos em empresas e eventos em que falo sobre como a ousadia e a cara de pau podem ajudar qualquer pessoa. E isso também vem das mais de 700 reportagens de CQC, nas quais eu tinha que dar um jeito de entrar no local e trazer conteúdo. Desde aquela época, eu não me conformava com os ‘nãos’. O que tento ensinar nas palestras é como qualquer ser humano pode se beneficiar com uma simples atitude.
O que projeta para o próximo ano? Voltar à TV?
R. C. – Eu queria voltar para a TV aberta com o Matéria Prima da TV Cultura. Espero que esse projeto retorne em 2024. Convites eu tenho o tempo todo, mas até como uma dívida com o CQC, só quero me envolver num projeto público que desperte as provocações que esses dois programas despertaram.
Participaria do BBB 24?
R. C. – Eu fiz um quadro lá em 2017 e acho que o Boninho não me chamaria mais. Mas, se chamasse, eu iria porque a passagem da Manu Gavassi pelo reality (em 2020) mostrou que uma pessoa com conteúdo e comprometimento com o trabalho pode passar bem por lá.
LEONARDO VOLPATO / Folhapress