SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Se você já conseguiu realizar uma tarefa complicada ou superou um desafio ao ficar insistindo naquilo “só de raiva”, saiba que há dados experimentais indicando que essa estratégia pode funcionar mesmo. Em laboratório, psicólogos americanos verificaram que ficar com raiva tende a aumentar a eficiência das pessoas diante de certos problemas desafiadores.
Os resultados, que acabam de sair na revista especializada Journal of Personality and Social Psychology, vêm de trabalhos coordenados por Heather Lench, da Universidade do Texas A&M. Junto com quatro colegas, Lench realizou uma bateria de experimentos tentando investigar os efeitos de sentir raiva sobre o desempenho de centenas de voluntários (em sua maioria, alunos de graduação da universidade texana, que eram recompensados pela participação com pontos na disciplina que estavam cursando).
A pesquisadora e seus colegas têm como ponto de partida uma visão funcionalista das emoções humanas. Ou seja: já que a experiência de sentir raiva em determinados contextos é algo comum a praticamente todos os membros da nossa espécie, faz sentido imaginar que essa emoção evoluiu por um bom motivo, adquirindo algum tipo de função importante para o comportamento, a cognição e a capacidade de resolver problemas.
Por enquanto, essa ideia tinha sido investigada principalmente em contextos sociais, ou seja, nos quais a manifestação da raiva podia influenciar a interação entre duas ou mais pessoas. Esse tipo de experimento mostrou que agir de forma raivosa faz com que outras pessoas tentem contemporizar com o sujeito esquentado, fazendo concessões a ele e evitando contrariá-lo frontalmente.
No entanto, como a raiva humana (e mesmo a de outros mamíferos) não se manifesta apenas em contextos sociais, Lench e seus colegas propuseram investigar uma dimensão mais ampla dessa emoção. Segundo a hipótese deles, a raiva seria um fenômeno emotivo “orientado para objetivos”, que aparece toda vez que alguém é confrontado com um obstáculo e tem como meta superá-lo, custe o que custar.
Para testar essa ideia, eles submeteram os voluntários (em geral, eram grupos com pouco mais de 200 pessoas cada um) a diversos testes, sem mencionar de antemão que o objetivo da pesquisa era investigar o papel da raiva e de outras emoções.
No chamado Estudo 1, o objetivo era desembaralhar letras para formar palavras o mais rápido possível (digamos, usar as letras P-L-E-X-O-E-M para formar a palavra “EXEMPLO”). No Estudo 2, um grupo diferente de participantes precisava fazer contas com números “quebrados” (por exemplo, somar 2,32 com 7,68) de modo que o resultado fosse dez, e quem acertasse o maior número de contas ganharia prêmios. Já o Estudo 3 foi feito com um videogame equipado com captura de movimento, no qual os voluntários tinham ou de contornar várias bandeiras num jogo de esqui ou então dar um único salto numa rampa nesse mesmo jogo.
Por exemplo, você pode ficar irritado durante uma discussão com o seu cônjuge. Seu objetivo pode ser melhorar o seu relacionamento, e nesse caso a raiva pode levar você a expressar suas necessidades e tentar resolver a situação
pesquisadora da Universidade do Texas A&M
Em todos esses experimentos, antes de a tarefa começar, as pessoas eram expostas a imagens que podiam ser “neutras” (fotos de bolos, doces etc.) ou tinham o objetivo de despertar reações emocionais, como tristeza, divertimento ou raiva (nesse caso, uma tática comum foi usar memes que ridicularizavam os times da universidade, um insulto sério para estudantes americanos). A ideia era ver se o subgrupo de pessoas submetidas a imagens que provocavam raiva teria algum comportamento diferente dos voluntários nos outros subgrupos.
E, de fato, foi o que aconteceu. No Estudo 1, por exemplo, as pessoas que viram as imagens pensadas para provocar raiva desembaralharam 40% mais palavras do que os voluntários que viram imagens neutras. O interessante é que a tarefa foi dividida em três fases, duas fáceis com uma difícil no meio, e o efeito apareceu justamente pelo melhor desempenho dos “enraivecidos” na fase difícil nas outras fases, não houve diferenças.
Do mesmo modo, no Estudo 3, passar raiva melhorou o desempenho no videogame quando o objetivo era mais complexo desviar das bandeirolas no esqui fazendo zigue-zague, mas não quando era preciso apenas dar um pulinho com o esqui.
O lado sombrio desse tipo de reação apareceu no Estudo 2: como os resultados dos desafios matemáticos eram relatados ao coordenador do experimento pelo próprio voluntário, havia o incentivo de as pessoas mentirem para ganhar brindes. No caso de quem tinha visto as imagens que provocavam raiva, a trapaça foi empregada por 60% dos participantes, contra 27% dos que viram as imagens neutras.
“É comum que as pessoas prefiram usar as emoções positivas como instrumentos para atingir um objetivo, vendo as emoções negativas como indesejáveis e pouco adaptativas”, explicou a coordenadora do estudo em comunicado. “Nossa pesquisa traz mais peso às evidências crescentes de que uma mistura de emoções positivas e negativas promovem o bem-estar, e que usar as emoções negativas pode ser particularmente eficaz em algumas situações.”
Segundo Lench, isso não significa que os efeitos negativos popularmente associados a agir motivado pela raiva não aconteçam também: tanto o lado negativo quanto o positivo coexistem.
“Por exemplo, você pode ficar irritado durante uma discussão com o seu cônjuge. Seu objetivo pode ser melhorar o seu relacionamento, e nesse caso a raiva pode levar você a expressar suas necessidades e tentar resolver a situação. Mas, se seu objetivo for provar que está certo, a raiva pode levá-lo a ignorar o que o parceiro está dizendo, ridicularizá-lo ou mesmo ser agressivo com ele”, explicou ela à Folha. “Assim, os benefícios ou malefícios da raiva dependem do objetivo que você tem e como eles afetam a maneira como você reage a uma situação.”
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress