Rascunho da Constituição do Chile entra em fase final com digitais da ultradireita

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O texto da nova Constituição chilena entra em sua fase final com as digitais da ultradireita e altos níveis de impopularidade, em um processo que até agora encurralou a esquerda e deixou evidente o sentimento antiestablishment no país sul-americano.

O documento retornou neste sábado (7) à Comissão de Especialistas, órgão formado por 24 indicados por partidos políticos com representação no Congresso —e que, portanto, reflete a composição mais equilibrada do Legislativo. Caso distinto ao do Conselho Constitucional, com 50 membros eleitos pelos chilenos em uma votação na qual o ultradireitista Partido Republicano saiu vitorioso.

Foi esse último órgão que, nos últimos quatro meses, discutiu e emendou o rascunho feito pelos especialistas, que agora voltam a avaliar o texto antes que ele retorne ao Conselho para ser finalmente votado antes do plebiscito em que a população vai aprovar ou rejeitar a proposta, no dia 17 de dezembro.

Esta é a segunda vez que o Chile tenta substituir a Carta instituída na ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006). Na primeira, no ano passado, uma votação com nível recorde de participação mostrou que 61,8% dos eleitores rejeitavam a primeira versão, em uma derrota para o atual presidente, o esquerdista Gabriel Boric.

Na ocasião, o resultado foi um balde de água fria naqueles que votaram movidos pelo espírito das manifestações de 2011 e 2019, que pediam mais acesso a aposentadoria, educação, saúde e moradia de qualidade —reivindicações limitadas pela Constituição de caráter liberal em vigor, que não obriga o Estado a oferecer esses serviços diretamente.

Composta majoritariamente por legisladores independentes de esquerda, a Assembleia Constituinte da primeira tentativa aparentemente avançou demais para parte da população em temas relacionados à pauta de costumes e às questões indígenas.

Desta vez, a estratégia foi diferente. O texto saiu da Comissão de Especialistas no último junho à direita do primeiro projeto fracassado e à esquerda da atual Constituição chilena —uma espécie de acordo dentro do mínimo comum entre as diferentes forças políticas do país.

Esse equilíbrio, porém, foi quebrado quando saiu de um órgão com apenas um representante do ultraliberal Partido Republicano para uma entidade em que a sigla tinha 22 de 50 cadeiras.

“O Conselho tem uma sobrerrepresentação da direita e particularmente da direita mais radical”, afirma Gabriel Negretto, professor do departamento de ciências sociais da Universidade Carlos 3º de Madri e da Pontifícia Universidade Católica do Chile. “Em muitos aspectos, as alterações que o Partido Republicano propôs desmontam esse quebra-cabeça que foi alcançado no anteprojeto.”

Negretto se refere a emendas como a da proteção à vida, que protagonizou os embates ao longo do processo. Sob influência de José Antonio Kast, adversário de Boric nas eleições de 2021, os republicanos se inspiraram na Constituição atual, que “protege a vida que está por nascer”, para aprovar uma emenda segundo a qual a lei “protege a vida de quem está por nascer”.

Uma mudança pequena, mas que para críticos pode levar a interpretações de que o feto é um sujeito com direitos e colocar em xeque o acesso ao aborto nos três casos permitidos pela legislação chilena: estupro, riscos para a mãe ou má-formação grave do feto.

Em outra pauta cara aos setores mais conservadores, a direita alterou o trecho do anteprojeto que versava sobre migrantes e determinou que estrangeiros que ingressem no Chile de forma clandestina seriam “expulsos no menor tempo possível […], salvo em casos de refúgio ou asilo”.

Houve recuos também em trechos que abriam portas para um Estado de bem-estar social —motivo original para redação de uma nova Constituição. O cerne do debate, que se desenrola em diversos exemplos, pode ser resumido na mudança do artigo do anteprojeto que definia o Chile como um “Estado de direito social e democrático”. Agora, o texto caracteriza o país como “social e democrático por lei”.

Para Stéphanie Alenda, diretora de pesquisa da Faculdade de Educação e Ciências Sociais da Universidade Andrés Bello, o texto, como está, é uma espécie de reconsagração do Estado subsidiário, ou seja, pouco intervencionista. “Há progresso nesse sentido em relação à Constituição atual, mas a balança pende muito mais para um Estado subsidiário do que para um Estado social”, afirma.

O fato de as mudanças estarem muito aquém das expectativas geradas pelos protestos massivos dos últimos anos faz o texto atual ter um gosto de derrota para a esquerda. Além disso, o viés conservador nas pautas de costumes, em especial, representa um baque para os progressistas.

“A esquerda chilena não é uma esquerda que reivindica a classe trabalhadora”, afirma Carlos Meléndez, doutor em ciência política e professor na Universidade Diego Portales. “O principal movimento social que hoje apoia o governo Boric não são os sindicatos, mas as feministas. O campo de luta dele é o cultural.”

O texto vai sair da Comissão de Especialistas em cinco dias com observações que serão votadas pelos conselheiros. Até o dia 7 de novembro, o documento final deve ter sido aprovado por três quintos do Conselho.

A reta final inclui ainda o convencimento da população, que não parece disposta a votar pelo projeto. “O eleitor chileno não está votando na versão 1.0 ou 2.0 pelo texto, mas pelo contexto. O primeiro foi um plebiscito para Boric e o segundo é um plebiscito para José Antonio Kast”, afirma Meléndez.

Na última semana de setembro, 54% disseram que votariam contra a proposta e 34% se disseram a favor, de acordo com uma pesquisa da empresa de opinião pública Cadem.

“O antiestablishment não tem dono e não sabe o que quer, mas sabe o que não quer —vota contra o que as elites propõem, sejam elas de esquerda ou de direita. Atualmente, as pessoas no Chile não são conquistadas pela mente ou pelo coração, mas pelo fígado, pelo estômago, pela raiva. Infelizmente”, completa o cientista político.

DANIELA ARCANJO / Folhapress

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