SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O número de pedidos de recuperação judicial de empresas subiu em 2023 quase 73% na comparação com 2022, após dois anos em queda, segundo projeções da EXM Partners com base em dados da Serasa Experian.
Apesar do aumento no volume na comparação com o ano anterior, o ano passado teve um número de processos próximo à média dos anos que antecederam a crise da Covid-19.
Ainda assim, o tema recebeu maior atenção, puxado pelos processos de grandes companhias como Americanas, Oi (que fez o segundo pedido em seis anos), Light, Petrópolis e Southrock, que foram à Justiça pedir autorização para reorganizar a casa sem que seus credores executassem suas dívidas.
Outras, como Marisa, TokStok e Amaro, adotaram medidas como reestruturação, as duas primeiras, e recuperação extrajudicial, a segunda. A fábrica de chocolates Pan e a Saraiva pediram autofalência e a Livraria Cultura precisou recorrer às instâncias judiciais superiores para suspender sua falência.
Nos anos de pandemia, os juros estavam baixos, o governo pagou benefícios que estimularam o consumo, deu incentivos a setores e as instituições de crédito postergaram prazos. Em 2023, a ressaca veio forte.
Os juros básicos bateram 13,75% já no fim do ano anterior, o consumo estava retraído, as contas começaram a vencer e apesar do fim tácito da pandemia, não houve movimento de retomada das atividades.
A projeção da EXM Partners, consultoria especializada em recuperação judicial e reestruturação, é a de que 2023 tenha fechado com ao menos 1.400 pedidos. De janeiro a novembro, último dado disponível, foram 1.303 processos encaminhados à Justiça.
O penúltimo mês do ano concentrou o volume de solicitações, foram 175, a maioria delas no setor de serviços (112) e enquadrada como micro e pequena empresa (137). Luiz Rabi, economista da Serasa, diz que apesar da melhora na inadimplência das empresas (com o recuo da Selic), o cenário de recuperações judiciais tem reagido em ritmo mais lento.
Para Angelo Guerra Netto, sócio da consultoria, o crescimento em 2023 leva a situação para os níveis registrados antes da pandemia, ou uma certa normalidade. “O que cresceu foi [a presença] de grandes empresas. O resultado geral é o de volta às bases históricas registradas de 2015 a 2019”, afirma.
Ainda que os cenários domésticos e macroeconômicos interfiram, o que leva empresas ao pedido de RJ é, quase sempre, má gestão, diz Guerra -ex-PWC, ele trabalha há 20 anos como auditor independente e desde 2007 com reestruturação e recuperação judicial.
Segundo o executivo, as falhas vão de investimentos em ativos ruins e imobilização de capital a dificuldades com a modernização dos processos produtivos. Mesmo casos cujo gatilho foi outro, o fim da linha será a gestão indevida.
É o caso da Samarco, mineradora responsável pela barragem de contenção de rejeitos em Bento Rodrigues, e que ficou conhecido como desastre ambiental de Mariana, em Minas Gerais, ocorrido em 2015. Em 2023, a mineradora, uma associação entre Vale e BHP Biliton, fechou acordo com seus credores.
Para essa empresa, falhas na gestão não afetaram o caixa, mas a crise de imagem que se seguiu do desastre (esse sim decorrente de problemas da administração) acabou levando a companhia ao colapso.
Para Ana Beatriz Moroni, sócia-líder da área de reestruturação da Deloitte, o Brasil ainda tem um volume grande de empresas familiares, onde acaba prevalecendo certo negacionismo da situação financeira, até que seja tarde demais.
As empresas evitam buscar mecanismos como reestruturação e recuperação pelo potencial dano à imagem da companhia. O que podia ser uma reestruturação, vira uma recuperação, e uma RJ pode virar uma falência.
Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria -a empresa está prestando serviços para Americanas atualmente- considera que, no caso da varejista “ninguém pode negar que a reputação fica abalada”.
Por isso, Maílson considera que há muito interesse na recuperação da empresa. “Não vai ser no próximo ano que as Americanas estarão recuperadas. É um processo gradual de restabelecer a confiança com os fornecedores integralmente.”
Ele avalia que a recuperação da Americanas é importante também para que o mercado de crédito se reestabeleça e retorne ao nível de oferta anterior à crise.
Segundo pesquisa da Delloite divulgada em dezembro, empresários, juízes e advogados consideram que processos de insolvência ainda são associados a uma imagem negativa, de uma empresa prestes a fechar as portas sem pagar o que deve.
Não é bem assim, mas também não quer dizer que os credores passem ilesos pelos processos. Quando o pedido de RJ é aceito, a empresa consegue suspender suas obrigações com credores e consumidores por 180 dias.
O prazo é usado para o levantamento e classificação dos credores e a construção do plano de recuperação judicial, no qual são definidos os parâmetros de pagamento das dívidas e o deságio, ou seja, o desconto sobre o valor atualizado.
Breno Miranda, do Ibajud (Instituto Brasileiro de Solvência), diz que o sistema vem evoluindo desde 2005, quando a primeira versão da lei de falências e recuperações judiciais foi publicada. Até então, as concordatas, como eram chamadas as falências, eram reguladas por decretos.
Na avaliação dele, ainda que exista uso indevido da recuperação judicial, aprimoramentos da legislação ajuda a afunilar os casos, como a criação da constatação prévia, que entrou em vigor no fim de 2020. Essa perícia é feita antes de o juiz decidir se o processo de RJ tem ou não condições de seguir.
O perito informa ao juiz se a empresa existe, se está em atividade, qual o tamanho do grupo empresarial. Foi o que aconteceu no caso da Southrock, controladora da Starbucks no Brasil.
Para Angelo Guerra, da EXM, a constatação prévia vem fazendo com que o nível dos processos suba. “Com isso, o pedido de recuperação judicial já não tem mais o objetivo de apenas atrasar a falência, há um filtro na largada.”
O filtro reduziu o número de deferimentos, que deixam de ser quase automáticos, mas a tendência é que aumente o número de processos encerrados com o soerguimento da companhia. Apesar do desgaste de imagem da recuperação judicial, são comuns os casos em que a empresa segue funcionando até que o processo seja encerrado -é o que aconteceu com Viracopos, por exemplo.
Outra mudança recente que melhorou o andamento desses processos foi a criação das varas especializadas. Em 2019, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou uma recomendação para que os tribunais de justiça criassem câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação judicial e outros temas ligados ao direito empresarial.
A criação dessas varas mudou o panorama de processamento dos pedidos de recuperação e de falência, tornando-os mais céleres, especialmente os apresentados em comarcas do interior dos estados, onde o mesmo juiz acumula casos dos mais diversos assuntos.
Segundo o CNJ, somente oito estados brasileiros têm varas especializadas: Ceará, São Paulo, Tocantins, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Juntos, esses tribunais têm 20 varas dedicadas a falências e RJs.
Falências ‘sem fim’ devem ficar menos comuns
Casos longínquos de falência, alguns sem qualquer movimentação processual por anos, devem começar a ficar mais raros. Na pesquisa da Deloitte sobre as impressões do mercado quanto ao atual cenário de falências, os entrevistados relataram otimismo quanto a maior celeridade dos processos.
Ana Beatriz Moroni, sócia-líder da área de reestruturação da consultoria, diz que há hoje maior preocupação em acelerar o processo de liquidação. A falência recente da fábrica de chocolates Pan é um caso de tipo. Foram sete meses entre a decretação da falência e o primeiro leilão de bens da companhia.
O governo federal quer que a duração dos processos caia pela metade. Projeto de lei enviado ao Congresso na quarta (10) altera a lei para que os credores possam indicar um administrador judicial e para acelerar o pagamento de créditos trabalhistas mesmo quando houver disputa entre as prioridades.
Colaborou Júlia Moura
FERNANDA BRIGATTI / Folhapress