Reforma abre brecha para estados criarem novo tributo

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A proposta de Reforma Tributária aprovada na Câmara nesta quinta (6) trouxe uma mudança inesperada que deixou tributaristas em alerta: estendeu aos estados a autorização para cobrarem contribuições sobre produtos primários e semielaborados com a finalidade de financiarem fundos estaduais.

A prerrogativa vai liberar os estados para criarem um novo tributo e representa uma mudança na lógica do modelo em vigor, afirma os especialistas.

Enquanto um imposto tem destinação ampla, a contribuição tem um fim definido. Por sua natureza, a regra atual determina que contribuição é um tipo específico de tributo que só pode ser estabelecido pelo governo federal. O único tipo de contribuição liberada para os estados é a de caráter previdenciário.

“É um desastre completo”, diz Raul Jungmann, diretor-presidente do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração).

“O trecho leva a inúmeras interpretações, mas é certo que sua aplicação eleva a carga tributária, podendo alcançar as exportações, constitucionaliza todo e qualquer fundo estadual e cria um regime paralelo, o que contraria a simplificação proposta pela Reforma Tributária”, diz.

A mudança chegou à PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Reforma Tributária por meio de uma emenda aglutinativa já na madrugada desta sexta-feira (7). Ela prevê que a nova regra ficará em vigor até 31 de dezembro de 2043.

“Ninguém estava prevendo isso”, diz o tributarista Robetto Quiroga, professor de Direito Tributário da USP (Universidade de São Paulo) e da FGV Direito SP, e sócio do escritório Mattos Filho Advogados. “Com certeza temos a possibilidade de um novo imposto, e o artigo é muito genérico.”

Quiroga afirma que será preciso ver como a discussão vai evoluir no Senado.

“É esdrúxulo”, diz, por sua vez, o tributarista Luiz Gustavo Bichara. “Nós fizemos a Reforma Tributária para trocar cinco impostos por um, mas já estamos com quatro: IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), imposto seletivo e, agora, essa contribuição estadual.”

“Por traz disso está o fato de que os estados criaram taxas e fundos para tributarem o que não podiam e estão tentando não apenas manter isso, mas ampliar.”

A análise geral é que a redação do texto abre brecha para que os estados possam ampliar a cobrança especialmente sobre minérios e produtos agropecuários -e de forma bem ampla, inclusive sobre suas exportações, que hoje estão vetadas a esses entes.

Pela norma constitucional atual, o ICMS não é aplicado sobre exportações, e a reforma prevê que seu substituto, o IBS, também não poderá recair sobre as vendas externas. Ficou estabelecido que não haverá tributação na etapa final (venda ao exterior), e a empresa tem direito ao crédito de tudo o que foi recolhido ao longo da cadeia

“Na calada da noite, sem ninguém se atentar, foi introduzido um gigantesco jabuti na votação da PEC”, diz Fernando Scaff, tributarista e professor titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito Largo São Francisco da USP. Jabuti é o apelido dado a mudanças introduzidas em projetos de lei que não têm relação com a proposta original da matéria.

Na avaliação de Scaff, o artigo ressuscita antigos problemas que já haviam sido sanados, como a discussão do que seria um produto semielaborado.

“Isso já criou enormes confusões no passado, quando da aprovação do texto original da Constituição que permitiu que os estados, através do Convênio Confaz 66/89, criassem um conceito amplíssimo, de tal modo que quase tudo passou a ser tributado pelo ICMS”, afirma ele.

Scaff destaca ainda que o ministro do Tribunal Contas da União Antonio Anastasia, quando ainda era senador por Minas Gerais, propôs algo semelhante, que seria a incidência de ICMS sobre a exportação de commodities. A proposta não vingou.

“No caso, o que se pretende com a emenda é não apenas permitir a tributação das exportações, como também permitir que haja a cobrança no mercado interno através de uma ‘contribuição’, figura não afastada pela reforma”, afirma ele.

Quem acompanha as discussões tributárias nos estados diz que a emenda replica proposta de cobrança adotada no final do ano passado pelo estado de Goiás, onde o governador Ronaldo Caiado foi reeleito.

Goiás criou o Fundeinfra, um fundo estadual de infraestrutura, que passou a ser mantido por taxas que recaem sobre o agronegócio e o setor de mineração. A cobrança não ocorre diretamente.

O governo goiano exige o pagamento do ICMS dos produtos destinados à exportação quando deixam o estabelecimento de origem, com o compromisso de devolver o valor depois que comprovada a venda externa. Se a empresa não quiser sofrer essa retenção temporária, deve aderir a um regime especial de controle de exportação do estado. Essa alternativa, no entanto, pressupõe uma contribuição para o Fundeinfra.

A CNI (Confederação Nacional da Indústria) questiona o procedimento por meio de uma uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal). Com a emenda, fica também no limbo o destino dessa discussão jurídica.

Em mensagem à reportagem, o governador Ronaldo Caiado disse que não articulou a inclusão da emenda, mas passou a apoiar a medida quando foi informado sobre o seu conteúdo. Caiado foi um dos governadores que mais questionou os rumos da reforma.

“Mas jamais coloquei como sendo matéria de troca com os princípios maiores que continuo questionando a respeito do conteúdo da Reforma Tributária”, disse Caiado.

O governo afirmou ainda que defende que a reforma mantenha todos os fundos constitucionais, os de combate à pobreza e os de apoio à infraestrutura que vários estados criaram. Da mesma forma que defende a autonomia dos estados para adotar suas políticas de desenvolvimento.

Procurado pela reportagem para comentar a repercussão, o relator da proposta, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), não respondeu até a publicação deste texto.

ALEXA SALOMÃO / Folhapress

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