Reforma da aposentadoria no Uruguai divide sociedade e vira tema de plebiscito

MONTEVIDÉU, URUGUAI (FOLHAPRESS) – Em mais uma eleição tranquila no país que ainda é considerado um bastião democrático em uma América do Sul polarizada, o Uruguai viu os holofotes da votação para presidente e legisladores ser direcionado para outro tema: a reforma da aposentadoria.

Ao ir às urnas no próximo domingo (27) para o primeiro turno das eleições, os uruguaios também são chamados a votar em um plebiscito que pode virar de ponta-cabeça o sistema previdenciário do país, no que o governo descreve como uma verdadeira hecatombe fiscal.

Há quem diga, para fazer um paralelo que ajuda a ter dimensão da mudança que isso representaria, que aprovar a proposta nas urnas seria como um brexit em termos de consequências futuras para esse pequeno país de 3,4 milhões de habitantes.

Convocado após a maior central sindical uruguaia, conhecida como PIT-CNT, reunir 430 mil assinaturas em apoio, o plebiscito propõe três sensíveis pontos para alterar a Constituição: 1) estabelecer que a idade mínima de aposentadoria é de 60, não mais 65 anos; 2) acabar com os fundos privados de Previdência, complementares ao sistema público; 3) atrelar o valor mínimo da aposentadoria ao do salário mínimo.

A proposta vem quase como resposta a um dos maiores e controversos feitos do governo do presidente Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, que deixará o cargo após cinco anos já que não pode concorrer à reeleição consecutiva. Sob a sua batuta, o Congresso aprovou uma reforma da Previdência que tinha como mudança principal aumentar a idade mínima de aposentadoria dos então 60 anos para 65.

A oposição concentrada no grande bloco da aliança Frente Ampla discordou do teor, mas concorda no mérito: é preciso reformar para ontem o sistema de aposentadoria uruguaio.

Ocorre que a conta começa a não fechar. Com uma população em declínio há três anos (no Brasil isso deve ocorrer somente em 2042), expectativa de vida alta (78,1 anos) e cada vez menos nascimentos, o Uruguai aos poucos tem mais gente para receber aposentadoria e pouca gente para contribuir com esse sistema.

Membros históricos da esquerda local, como o ex-presidente José “Pepe” Mujica e sua esposa, a ex-vice-presidente Lucía Topolansky, tampouco estão a favor, como ela relatou à reportagem. “Não se pode atar à Constituição regras que terão de mudar de tempos em tempos levando em consideração a idade da população.”

Os analistas locais não descartam possibilidades de uma surpresa, mas até aqui o plebiscito da aposentadoria parece minguar. Para ganhar nas urnas, seria preciso o apoio de ao menos metade dos votantes. Mas as últimas pesquisas mostram um possível apoio de apenas 30%.

Há uma boa parte do eleitorado que parece desconhecer o conteúdo da proposta (em torno de 30%). E é aí que mora a dúvida. No Uruguai, cabe aos partidos políticos distribuírem as cédulas eleitorais de seus candidatos, as mesmas que o eleitor deve depositar nas urnas.

O mesmo vale para os plebiscitos: cabe aos seus apoiadores, as centrais sindicais à frente, distribuírem a cédula branca com um “Sí” (sim), que deverá ser colocado em um envelope e depositado na urna caso o eleitor esteja de acordo. É por isso que ainda se vê alguma margem de disputa caso os defensores tenham a habilidade de distribuir essas cédulas aos indecisos e convencê-los de que essa é uma boa ideia.

Oficialmente, a Frente Ampla, a atual oposição que foi governo por 15 anos seguidos, de 2005 a 2020, até Lacalle chegar ao poder, não apoia o plebiscito. O candidato do partido à Presidência, o ex-prefeito e professor de história Yamandú Orsi, favorito, evita o tema.

Mas há partes desse enorme emaranhado de forças políticas frente-amplistas que destoam e fazem campanha ativa. Na entrada de um ato de Orsi na terça-feira (22) em Montevidéu, um militante do Partido Socialista dos Trabalhadores, de esquerda radical, distribuía a cédula de seus candidatos junto com uma cédula pelo sim.

A poucos metros, na boca do palco onde discursavam lideranças da campanha, uma apoiadora gritava “E a aposentadoria!!! Votem ‘sim’!” a cada meia dúzia de propostas que os membros apresentavam ao microfone e que, claro, ignoravam o plebiscito.

Esse mecanismo de participação democrática direta no país tende a falhar quando feito junto com um processo eleitoral. Cientistas políticos ponderam que as eleições roubam a cena e a discussão do plebiscito fica empobrecida. No caso do projeto para a reforma da aposentadoria, porém, é possível ver a cautela de todos.

O próprio Lacalle Pou tem feito campanha pelo não. No começo de outubro, disse que “o que se propõe é perigoso”. “Faz o sistema ser insustentável. Para bancar isso será preciso cobrar mais impostos e tirar orçamento de outras partes. Isso compromete as aposentadorias do futuro. Não votem”, pediu ele.

O professor aposentado da Universidade da República Álvaro Forteza, especialista em Previdência, diz que o texto do plebiscito deixa muitas dúvidas. Ao atrelar o valor da aposentadoria ao do salário mínimo, por exemplo, abre-se a chance de os governos reduzirem o salário, afetando a todos, para não terem de aumentar todos os benefícios. O custo anual apenas dessa alteração é avaliado em US$ 1,5 bilhão ao ano.

Ao fechar os fundos privados de Previdência, onde estão US$ 23 bilhões, todo esse dinheiro depositado por alguns uruguaios irá diretamente para o fundo público. Muitos dizem que é uma espécie de sequestro de bens. E algumas projeções calculam que, no longo prazo, o preço dessa alteração na Constituição seria de 8,1% do PIB uruguaio.

“Compartilho de toda a preocupação, mesmo porque essa mudança pode fazer crescer o risco-país”, diz ele. “O mecanismo do plebiscito, de democracia direta, é valioso, mas não permite uma negociação sobre um tema tão sensível, como ocorre por exemplo no Congresso.”

E os cem economistas de maior renome que apoiam a aliança publicaram uma carta contra o projeto. “O plebiscito não soluciona os problemas, tem consequências injustas e regressivas e gera enormes custos”, disseram eles, que também se opõem à reforma que o governo aprovou, mas querem algum outro caminho possível.

MAYARA PAIXÃO / Folhapress

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