Relação Brasil-Alemanha foi de abismo na 2ª Guerra a cooperação no século 21

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um associado do Sport Club Germania assistia a um desfile do clube em São Paulo e ouviu uma conversa entre dois militares do governo Getúlio Vargas sobre expropriar o terreno do clube para construir um quartel de cavalaria. Ele correu com a notícia para a diretoria da entidade.

O ano era 1942, e a agremiação, fundada por alemães em 1899 e até então composta principalmente por germanófilos, já estava sob intervenção federal do Estado Novo (1937-1945). O que não impediu o interventor, Henrique Villaboim, de agir rápido: convocou uma reunião às pressas e, em 18 de março daquele ano, rebatizou o Germania.

A entidade se desfez de suas raízes alemãs, pelo menos ostensivamente, e adotou o nome pelo qual é conhecido atualmente: Esporte Clube Pinheiros, hoje um dos clubes mais importantes do país.

A conversão do Germania em Pinheiros foi um dos marcos do pior momento das relações entre o Brasil e a Alemanha, marcadas neste ano pelo bicentenário da chegada dos primeiros imigrantes germânicos. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ao lado dos aliados e contra Adolf Hitler, a ditadura do Estado Novo, assim como fizeram os Estados Unidos de Franklin Roosevelt, ergueu campos de concentração para estrangeiros, principalmente alemães e japoneses.

“Entre 1943 e 1945, há uma proliferação de notícias denunciando a atuação de espiões do eixo, os chamados quinta-colunistas –em sua maioria alemães e japoneses, mas principalmente alemães, que praticavam atos de sabotagem contra o esforço de guerra nacional. Muitos foram presos e permaneceram detidos em campos de concentração criados especialmente para isso”, afirma o historiador da PUC-SP Vandré Teotônio.

O Pinheiros, porém, escapou da dissolução, medida adotada à época contra muitas associações de países do eixo no Brasil. “Foram fechados o Iate Clube de Niterói, a Sociedade Teuto-Brasileira e igrejas evangélicas luteranas, bem como uma série de pensionatos no sul do país que eram administrados por religiosos alemães”, diz Teotônio.

Empresas que pertenciam a alemães foram nacionalizadas, como a Condor, ligada à aérea Lufthansa, ou simplesmente fechadas, como aconteceu com uma série de lojas de departamento no Rio de Janeiro.

A perseguição, entretanto, foi precedida de um período de relações amistosas de Vargas com a Alemanha nazista, dada a simpatia do líder brasileiro pelo fascismo -a aproximação teve seu momento mais notório quando o governo brasileiro autorizou, em 1936, a deportação da judia e comunista Olga Benário Prestes, que morreu no campo de concentração de Bernburg, em abril de 1942.

A virada ocorre com a entrada de Washington na guerra, em dezembro de 1941. A partir daí, os americanos se juntam aos britânicos no esforço para que o Brasil rompesse relações com o Terceiro Reich, o que ocorreu em janeiro de 1942, e depois para que houvesse a declaração de guerra, concretizada em agosto do mesmo ano.

Com a vitória aliada e o fim da Segunda Guerra, o Brasil se alinha aos países capitalistas e estabelece relações com a República Federal da Alemanha, a Alemanha Ocidental, que já no início dos anos 50 começa a investir no país -a Volkswagen do Brasil, por exemplo, é inaugurada em 1953.

Esse ciclo de expansão da presença de companhias alemãs no país não foi alterado pelo golpe de 1964 nem pelo endurecimento da ditadura no Brasil, motivo pelo qual há críticas sobre a maneira como a Alemanha Ocidental lidou com o regime militar.

“A presença de empresas alemãs no Brasil serviu para suavizar as críticas que os governos conservadores da CDU, mas também o governo de esquerda do premiê Willy Brandt (1969-1974), faziam à ditadura militar”, diz o jornalista e escritor Christian Russau, autor do livro “Empresas Alemãs no Brasil: o 7 a 1 na Economia”.

“Companhias do setor automobilístico e de mineração lucraram muito com o arrocho salarial promovido pelos militares e queriam participar do milagre econômico. Por isso, em muitos pontos, o governo alemão fechou os olhos para as atrocidades da ditadura”, afirma Russau.

Em 2017, um relatório encomendado pela Volkswagen com base em denúncias feitas à Comissão Nacional da Verdade concluiu que a empresa colaborou com a máquina de repressão militar, delatando trabalhadores envolvidos com atividades sindicais e, em pelo menos um caso, permitindo que agentes de segurança praticassem tortura nas dependências da empresa. A multinacional fechou acordo com o Ministério Público em 2020 para doar R$ 36 milhões como reparação das violações de direitos humanos.

Para além dos negócios do setor privado, a Alemanha Ocidental fechou parceria com o regime militar para dar início ao programa nuclear brasileiro, o que possibilitou a construção das usinas Angra 1 e Angra 2. O objetivo era incentivar e financiar as empresas nucleares alemãs -hoje, o país abandonou a geração de energia atômica depois de um longo período de pressão da sociedade civil, mas ainda exporta urânio enriquecido.

Desde a redemocratização no Brasil e a reunificação das Alemanhas, é possível medir o termômetro das relações bilaterais pelo número encontros de alto nível, afirma Russau. A longeva primeira-ministra Angela Merkel, no poder de 2005 a 2021, esteve no Brasil em 2008, quando se encontrou com o presidente Lula (PT), em 2014, para reuniões bilaterais com a presidente Dilma Rousseff, e em 2015, no segundo mandato de Dilma, para consultas entre os governos.

“Não houve visitas durante o governo Michel Temer, um sinal de que a gestão Merkel considerava o impeachment inadequado. O descontentamento ficou mais visível ainda no governo do premiê Olaf Scholz em relação a Jair Bolsonaro, e as visitas só retornaram no ano passado, no terceiro mandato de Lula”, observa Russau.

Passado o distanciamento com Bolsonaro, o relacionamento voltou a espelhar a importância dada pela Alemanha ao Brasil. Trata-se do único país na América Latina, desde 2008, a ser parceiro estratégico de Berlim, uma classificação rara fora da União Europeia. Os alemães também apoiam a ambição brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e investem no Fundo Amazônia. Nos 200 anos da presença alemã no país, há consenso dos dois lados de que o momento é apropriado para celebração.

VICTOR LACOMBE / Folhapress

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