SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ainda há muita incerteza sobre o quanto do relato do programador Walter Delgatti Neto à CPI do 8 de janeiro sobre um suposto plano para colocar em xeque as urnas eletrônicas e as eleições de 2022 pode vir a ser comprovado por outros elementos para além de sua palavra.
O então presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu o hacker da Vaza Jato no Palácio da Alvorada em agosto do ano passado, a menos de dois meses da eleição, e nessa reunião teria sido tratada uma forma de, no 7 de Setembro daquele ano, apresentar à população uma simulação falsa sobre fraude nas urnas.
Ao final o plano não foi realizado.
Sendo comprovado que as conversas para a farsa de fato ocorreram, ainda deve haver um complexo debate sobre suas implicações legais.
Professores de direito e advogados consultados pela reportagem apresentaram visões bastante distintas sobre um possível enquadramento criminal do que foi relatado. Ressaltam porém que ainda é prematuro fazer essa classificação.
De modo geral, os especialistas não veem crime no episódio de modo isolado, especialmente se, de fato, ele não tenha passado de conversas.
Por outro lado, há quem aponte que a reunião de Delgatti com Bolsonaro, junto a outras evidências, pode servir como elemento para implicar o ex-presidente no 8 de janeiro. Há também quem considere não ser possível fazer essa conexão.
Uma das frentes de investigação da Polícia Federal sobre os ataques golpistas mira os possíveis autores intelectuais, é ela que pode alcançar Bolsonaro.
Quanto à acusação do hacker de que Bolsonaro, naquela mesma reunião no Alvorada, teria pedido para ele assumir a autoria de um grampo de conversas com o ministro Alexandre de Moraes (STF), os especialistas apontam que haveria crime no caso de o grampo ter sido efetivamente realizado ou ao menos tentado. A pena é de 2 a 4 anos de prisão e multa.
Até o momento, não se sabe se houve essa tentativa. Delgatti disse que nunca teve acesso ao suposto grampo do ministro.
Em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro disse que Delgatti fantasiou. Ele reconheceu a reunião, mas disse ter encaminhado o hacker ao Ministério da Defesa e que desconhece grampo.
Durante a sessão da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), que é líder do governo no Congresso, afirmou que a fala de Delgatti seria o relato de uma sequência de crimes, citando o crime de golpe de Estado em relação à simulação de fraude e de escuta telefônica ilegal quanto ao suposto grampo.
Para Davi Tangerino, que é advogado criminalista e professor de direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a partir do que foi relatado por Delgatti, mesmo que se comprove que o plano envolvendo a urna existiu, a princípio, não estaria configurado crime.
“A preparação não é punível se o crime não é ao menos tentado, ou seja, tem que ter um início de execução.”
Ele afirma, porém, que há uma ressalva quanto ao crime de golpe de estado, porque nele já é prevista a criminalização da tentativa. Tangerino diz que talvez haja espaço para interpretação do suposto plano como uma “tentativa de tentativa”, o que seria, na visão dele, uma interpretação muito forçada e uma “aventura perigosa”.
O Código Penal prevê a pena de 4 a 12 anos de prisão para o ato de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
Antonio Santoro, que é professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e advogado criminalista, tem visão distinta.
Para ele, se comprovado, o relato pode representar um elemento de prova relevante contra Bolsonaro no contexto das investigações sobre o 8 de janeiro, não devendo ser analisado como um episódio isolado, assim como o suposto plano de grampear Moraes.
“Entendo que isso faz parte de um complexo contexto do próprio golpe de estado”, diz. “Para executar o golpe de estado e legitimá-lo, o sujeito tem que descredibilizar o sistema eleitoral.”
Especialistas em engenharia da computação consultados pela reportagem explicam que, caso concretizado, o plano relatado por Delgatti não seria capaz de comprovar fragilidade do processo eleitoral. Poderia, contudo, ter um efeito de convencimento de um público leigo.
Segundo o hacker, a ideia seria rodar um código falso feito por ele em uma urna emprestada. A principal dificuldade no caso da eleição, entretanto, seria conseguir burlar as medidas de segurança e auditoria existentes.
Na avaliação de Raquel Scalcon, professora da FGV Direito São Paulo e advogada criminalista, o suposto plano poderia ser considerado como ato preparatório, ou seja, anterior a eventual execução de delito e, portanto, não punível.
A configuração de crime dependeria do que fosse efetivamente realizado. Ela avalia que, a princípio, não caberia falar em golpe de estado, por exemplo, pelo plano não envolver emprego de violência ou grave ameaça. Do ponto de vista criminal, Raquel não vê, a princípio, relação com o 8 de janeiro.
Vinicius de Souza Assumpção, advogado criminalista e segundo vice-presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), também considera que o fato isolado da farsa com a urna não configuraria crime.
Por outro lado, ele diz que o suposto plano poderia ser entendido como um elemento que reforça o contexto dos atos que culminaram na invasão dos prédios dos três Poderes. “Se ela é entendida com uma parte de um plano maior, aí tudo isso configuraria o golpe de estado, pensando no dia 8 de janeiro”, afirma.
A advogada criminalista e conselheira do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) Marina Coelho Araújo destaca a necessidade de mais investigações para averiguar quais são as provas que corroboram o que foi dito por Delgatti à CPI.
Ela diz que, com isso, há dificuldade para avaliar o possível enquadramento legal. “Pode ser crime contra a democracia, pode, mas também podem ser meros atos preparatórios [que não seriam puníveis]. Isso ainda está muito incipiente”, afirma.
Apesar de ainda considerar prematuro classificar as acusações de Delgatti do ponto de vista jurídico, Marina não vê conexão entre o suposto plano e o 8 de janeiro, mas sim com as eleições.
RENATA GALF / Folhapress