Religiões de matriz africana ainda precisavam de autorização da polícia nos anos 1960

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um documento amarelado pelo tempo, recém-encontrado por uma estudante de Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), comprova que em pleno século 20, no ano de 1961, permanecia a discriminação no Brasil às religiões de matriz africana, que eram obrigadas a obter permissão da polícia para exercerem suas atividades.

Emitido pela Delegacia Especial de Jogos e Costumes, da Bahia, em 31 de maio der 1961, o documento dava permissão para que Maria Escolástica da Conceição Nazaré pudesse “realizar uma festa de caráter Afro-Brasileira, nos dias 1 e 2 de junho p/vindouro, não sendo permitido o uso de bebidas alcoólicas, a presença de menores e depois das 22 horas o uso de atabaques”.

Maria Escolástica da Conceição Nazaré, que morreu em 1986, ficou nacionalmente conhecida como Mãe Menininha do Gantois, a mais famosa ialorixá da Bahia e uma das mais admiradas mães de santo do país.

A permissão em questão, que possibilitava o exercício de atividade religiosa no Terreiro do Gantois, em Salvador, foi encontrada por Luiza Lyra de Carvalho Lima, estagiária de museologia da instituição religiosa, em um dos móveis utilizados por Mãe Menininha, que está em exposição e raramente foi utilizado depois de sua morte. “Estava guardado em um saquinho de plástico, no meio das coisas de uso pessoal de Mãe Menininha, bem guardadinho”, diz Lyra.

A prática de religiões de matriz africana foi criminalizada pelo Código Penal Brasileiro, de 1890. Em seu artigo 157, ficava estabelecido que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios” era crime com pena de até seis meses de prisão, com multa de até 500 mil réis. Somente em 1939, no governo de Getúlio Vargas, a criminalização foi abolida, por meio do decreto-lei 1.202 de 1939, que em seu artigo 33 dizia que era vedado aos estados e municípios “estabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de cultos religiosos”.

Ocorre que um ano antes, em 1938, o próprio governo Vargas permitiu que os estados criassem as Delegacias de Jogos e Costumes, que tinham entre suas atribuições fiscalizar e autorizar o exercício das religiões de matriz africana. “A Delegacia de Jogos e Costumes foi o primeiro instrumento utilizado pelo poder público para controlar os terreiros, com a suposta alegação de inibir o barulho pelo toque dos atabaques”, afirma o historiador Francisco Nunes, professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia.

De acordo com Nunes, a historia dos candomblés brasileiros é a historia da perseguição. “Todo século 20 é atravessado por cenas flagrantes de perseguição”, diz. Na Bahia, um decreto-lei do então governador Roberto Santos, em 1976, desobrigou sociedades de culto afro-brasileiro de obter licença junto à autoridade policial. “Mesmo assim a segregação continuou, de outras formas”, acrescenta o historiador.

Maria Escolástica nasceu em 10 de fevereiro de 1894, filha de Joaquim e Maria da Glória. Descendente de africanos da nação Egbá-Arakê, no sudoeste da Nigéria, era bisneta dos negros libertos Maria Júlia da Conceição Nazareth e Francisco Nazareth.

Foi Maria Júlia que fundou a Casa do Candomblé do Gantois, em 1849, que historicamente mantém a política do matriarcado, com a sucessão hereditária. Mãe Menininha liderou a instituição de 1922 a 1986. Hoje a ialorixá que lidera é sua filha caçula, Carmem Oliveira da Silva.

Aos 96 anos, Mãe Carmem, como é conhecida, se lembra de ter vivenciado na sua infância e adolescência as dificuldades que as religiões de matriz africana passavam junto às autoridades.

“Eu nasci, cresci, presenciei e assisti às lutas de minha mãe e de todas as nossas mais velhas, no século 20, para proteger a comunidade do Gantois, e tantas outras, ao se encaminharem à Delegacia de Jogos e Costumes para obter o autorizo de funcionamento para realização de cerimônias, na tentativa de conter um pouco os abusos do poder local”, conta.

Sobre o documento encontrado, Mãe Carmem afirma que ele reforça a memória de um tempo que não deve ser esquecido, para não ser repetido.

“Hoje, através do trabalho de educação patrimonial, a estudante de museologia e monitora do Memorial Mãe Menininha, Luíza Lyra, traz à tona registros materiais comprovando esse recorte de tempo e ações oriundas da escravidão em nome de uma exclusão social dos povos tradicionais”, diz. “Nesse sentido, o Memorial cumpre a função sócio-educativa e político-cultural de fazer valer o repertório de tradições e o legado inegável do povo negro.”

FERNANDO GRANATO / Folhapress

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