SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Subir no palco para encenar “Alegria É a Prova dos Nove” é para Renato Borghi, de 87 anos, um reencontro triplo, repleto de emoções. No espetáculo, ele revisita Oswald de Andrade, celebra José Celso Martinez Corrêa, um de seus grandes amores, e ocupa um teatro projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, com quem trabalhou ao longo da vida e considera genial.
A revista antropofágica, uma costura entre trechos da vida de Oswald e acontecimentos recentes, estreou na semana passada no Sesc Pompeia, com música, literatura, vídeo e artes visuais em uma montagem do Teatro Promíscuo, companhia de Borghi e do diretor Élcio Nogueira Seixas.
“Oswald de Andrade é a pessoa que mais verdadeiramente e dolorosamente falou do Brasil. Ele foi visceral”, afirma o ator. “Ele falou do brasileiro de uma forma que pouca gente conseguiu. O brasileiro da classe média, do pinguim na geladeira, com aspirações de poder, de querer alguma coisa.”
A diretora Johana Albuquerque propôs a leitura de toda a obra do escritor modernista como parte do processo da montagem teatral, o que levou o elenco a vários encontros literários no apartamento de Borghi, um amplo espaço nos Jardins, em São Paulo, habitado coletivamente por artistas ligados ao veterano.
Experimentos dos anos 1960 e 1970, como “Tropicália”, de Hélio Oiticica, e “Baba Antropofágica”, de Lygia Clark, além de criações cenográficas de Flávio Império e Hélio Eichbauer, inspiram a visualidade da encenação.
Um dos disparadores para a criação foi o livro “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”, diário coletivo da garçonnière do jovem Oswald de Andrade, no centro de São Paulo. O espaço de 42 metros, na rua Líbero Badaró, é considerado um dos berços do modernismo brasileiro por sediar encontros e debates com intelectuais e artistas na São Paulo de 1918.
O ator lembra em detalhes o primeiro contato com o autor, na década de 1960, e a revolução que isso causou em sua vida e no teatro brasileiro.
“Eu estava em casa, morava perto do Teatro Oficina. Estava chovendo. Pensei: vou ler alguma coisa. Na estante tinha um livro velho, com as páginas amareladas. Eu me encantei desde a primeira até a última página”, diz. Era “O Rei da Vela”, peça escrita três décadas antes e que Borghi levou para Zé Celso, dando origem a uma montagem visceral do grupo fundado pelos dois.
A interpretação de Abelardo 1°, personagem central de “O Rei da Vela”, consagrou o ator e transformou Oswald de Andrade em ícone da tropicália. A peça foi remontada em 2017, com Zé Celso e Borghi no elenco, em mais uma etapa da relação de amor, brigas e amizade que durou seis décadas.
Agora, ao revisitar um autor tão importante para o Oficina, o ator pensa no velho amigo. “Ele foi um companheiro de vida. Nos conhecemos na Faculdade de Direito e sonhamos em fazer o Teatro Oficina. Foi uma aventura. Ninguém sabia da gente”.
Eles entraram juntos no antigo galpão da rua Jaceguai, no Bixiga, que seria transformado no lendário teatro. Com a ajuda de artistas como Etty Fraser, conseguiram dinheiro para a reforma por meio de assinaturas em um livro de ouro e da venda de cadeiras cativas.
“A coisa mais fantástica que a gente teve foi a parceria artística que nos levou a fazer coisas lindas no Oficina”, diz. Borghi e Zé Celso foram casados durante 14 anos e, após a separação, romperam também a sociedade no teatro por discordâncias cênicas.
Mas a briga não deu certo. Sentiram falta um do outro, ficaram amigos e conversavam pessoalmente ou por telefone até a morte do encenador, em julho do ano passado.
“Eu acho que o Zé Celso foi o maior diretor que esse país já teve. Já trabalhei com muita gente boa, mas com ele tinha algo mais”, diz.
Borghi já não estava mais no Oficina quando Lina Bo Bardi criou a estrutura atual, com projeto concluído em 1994, a partir de um conceito em que a rua invade o espaço cênico e vice-versa, embora tenha tido experiências profissionais com a arquiteta.
Em 1969, por exemplo, ela foi cenógrafa do espetáculo “Na Selva das Cidades”, de Bertolt Brecht, no Oficina. Se encontraram também no filme “Prata Palomares”, de 1971.
Na célebre montagem da peça de Brecht, Lina tirou a primeira parte da plateia e instalou um ringue de boxe no espaço, criado com madeira de construção para encenar a luta entre dois homens, com muita quebradeira.
Um ringue também aparece em “Alegria É a Prova dos Nove”, assim como a ode ao teatro coletivo e o olhar à cultura brasileira, características típicas do Oficina.
Um dos mais importantes atores do teatro brasileiro, Borghi nunca se afastou dos palcos e comemora o processo de criação da peça atual, que incluiu muitas leituras, conversas e ensaios.
“Minha vida é o teatro, amo isso. Quando era criança, eu saía de trás das cortinas da minha casa e dizia poesias como se estivesse em um palco. Eu já gostava que batessem palmas. Acho que já era uma pessoa muito exibida.”
O artista, que segue lotando as plateias, afirma que sua carreira é uma festa, com direito a altos e baixos. Quando deixou o Oficina, por exemplo, ficou perdido e sem saber qual seria seu futuro artístico. Porém, logo foi chamado para a encenação de “Frank V”, de Friedrich Dürrenmatt, no Theatro São Pedro, ao lado da atriz Esther Góes, com quem era casado na época. Os dois tiveram um filho, Ariel Borghi, também ator.
As quatro cirurgias que fez na coluna e uma operação no coração não impedem Borghi de sonhar em realizar apresentações para plateias diversas. Parar não está nos planos. Ele quer viajar com o novo espetáculo para capitais como o Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Porto Alegre.
O artista conta com a parceria de uma fiel escudeira, Graça, que cuida do apartamento e dele –e chega a participar das encenações. Recebe também o apoio dos atores em cena para se movimentar. O espetáculo incorporou, de forma artística, a figura do ponto, profissional que “assopra” as falas eventualmente esquecidas.
Na estreia, Borghi encerrou “Alegria É a Prova dos Nove” celebrando a conquista do Parque do Bixiga, uma reivindicação de décadas de Zé Celso e sua trupe. Destacou a importância de lutar e de fazer teatro. A festa do ator continua.
Alegria É a Prova dos Nove
Quando: Qui. a sáb., às 20h, e dom., às 17h. Sessão extra na qua. (13), às 20hs
Onde: Sesc Pompeia – r. Clélia, 93, Água Branca, São Paulo
Preço: R$ 70
Autoria: Johana Albuquerque e Elcio Nogueira Seixas, a partir de textos de Oswald de Andrade
Elenco: Renato Borghi, Regina França e Fernanda DUmbra
Direção: Johana Albuquerque
CRISTINA CAMARGO / Folhapress