BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Na mira do governo por serem isentos do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), os rendimentos declarados por indivíduos brasileiros com lucros e dividendos alcançaram o recorde de R$ 555,7 bilhões em 2021 e se concentraram ainda mais no topo, isto é, entre os mais ricos.
O valor é 44,6% maior do que em 2020, quando essa fonte de renda se manteve em alta a despeito dos efeitos negativos da pandemia de Covid-19 e somou R$ 384,3 bilhões. O aumento expressivo supera com folga a inflação de 2021, que foi de 10,06%.
A cada R$ 100 declarados como lucros e dividendos, R$ 74 ficaram nas mãos do 1% mais rico –um seleto grupo formado por 359,9 mil brasileiros que informaram à Receita Federal rendimentos totais entre R$ 658,4 mil e R$ 22,5 bilhões no ano de 2021.
Trata-se de uma concentração ainda maior do que a observada em anos anteriores, quando o topo da pirâmide ficava com até 70% desses rendimentos –uma fatia já considerável e sempre apontada por especialistas como uma evidência da desigualdade de renda no país e das distorções no sistema tributário.
Ao todo, o 1% mais rico arrecadou R$ 411,9 bilhões dos lucros e dividendos reportados ao Fisco para o ano de 2021. A cifra é mais de duas vezes o orçamento atual do programa Bolsa Família (R$ 173,4 bilhões).
Os dados foram compilados pela reportagem a partir dos grandes números das declarações do IRPF de 2022, feitas com base nos rendimentos de 2021. A publicação das informações é feita anualmente pela Receita Federal.
Especialistas afirmam que a alta significativa dos valores pode ter sido consequência do projeto de lei 2.337/2021, que previa a retomada da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos à pessoa física. A proposta, enviada no governo Jair Bolsonaro (PL), chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados com uma alíquota de 15%, mas não avançou no Senado.
“Todas as empresas que tinham dividendos carregados [de outros exercícios] ou acumulados distribuíram para evitar a tributação. Isso criou um fator atípico”, afirma o economista e pesquisador Sérgio Gobetti, especialista na área tributária e que hoje atua na secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul.
Também contribui o fato de a Petrobras, uma das maiores companhias do país, ter distribuído R$ 101,4 bilhões em dividendos a seus acionistas, referentes ao desempenho da empresa no ano de 2021 –quando a cotação do petróleo e do dólar, a alta nas vendas e a ampliação das margens de lucro impulsionaram o resultado da petrolífera.
Os dados obtidos nas declarações do IRPF não refletem sozinhos o panorama integral da distribuição de renda no país, uma vez que apenas 36 milhões de brasileiros prestaram contas à Receita Federal. Mas as informações são um termômetro relevante para identificar o que aconteceu com os rendimentos da população no ano de 2021.
O diagnóstico mostra maior resiliência dos lucros e dividendos, num momento em que os trabalhadores ainda sofriam no bolso as consequências da pandemia. O rendimento médio mensal do trabalho caiu de R$ 2.638 em 2020 para R$ 2.476 em 2021 –uma queda real de 6,1%, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Enquanto isso, segundo a Receita Federal, o rendimento médio do 1% mais rico, considerando todas as fontes, subiu 27,7% em termos nominais, passando de R$ 1,8 milhão em 2020 para R$ 2,3 milhões em 2021. A alta supera a inflação, indicando ganho real para esse grupo, boa parte explicado pela ampliação nos lucros e dividendos.
A renda dos assalariados é tributada em até 27,5%, de acordo com a tabela do IRPF. Já os ganhos da pessoa física com lucros e dividendos são totalmente livres do Imposto de Renda.
As informações da Receita permitem saber também quanto desses rendimentos isentos estão nas mãos de estratos ainda mais abastados.
O 0,1% mais rico, que reúne 36 mil contribuintes com ganhos acima de R$ 3,42 milhões, concentrou R$ 251,4 bilhões dos lucros e dividendos recebidos em 2021.
Já o 0,01% mais rico, um grupo restrito de 3.599 contribuintes com renda entre R$ 20 milhões e R$ 22,5 bilhões, responde por R$ 117,5 bilhões dessas receitas informadas no ano.
Os lucros e dividendos eram tributados no Brasil até 1995, mas uma lei sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) isentou esses rendimentos a partir de 1996. Desde então, tentativas de retomar a taxação esbarraram nas resistências do andar de cima.
A volta da tributação está nos planos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) disse que vai discutir o tema com cautela para não sobrecarregar empresas nem afetar negativamente a classe média.
Ao tributar lucros e dividendos distribuídos à pessoa física, técnicos do governo avaliam ser necessário reduzir as alíquotas incidentes hoje sobre o resultado das empresas, para evitar uma carga muito elevada e, ao mesmo tempo, incentivar maior retenção desses valores para a realização de investimentos.
O fim da isenção tem o apoio de especialistas. “Não tem absolutamente nada mais importante a ser feito do que retomar os impostos sobre lucros e dividendos. Para mim, isso deveria ser a prioridade número um. É a única coisa de impacto grande de arrecadação, e que tem um papel progressivo muito grande”, diz Luiza Nassif, pesquisadora do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo).
Ela destaca que a ausência da cobrança tem repercussões fiscais e sociais. Do lado das contas públicas, é como se fosse um gasto tributário –como são chamados os benefícios fiscais concedidos a setores ou atividades. Nassif calcula que uma alíquota de 15% sobre os lucros e dividendos poderia ampliar a arrecadação em até R$ 80 bilhões, dos quais R$ 60 bilhões vindos apenas do 1% mais rico.
No contexto social, segundo ela, a isenção de lucros e dividendos é um dos principais fatores de desigualdade racial na tributação. Como mostrou a Folha de S.Paulo, uma nota elaborada pelo Made/USP mostrou que o benefício reduz a alíquota efetiva do Imposto de Renda do 1% mais rico a 8,8% para homens brancos, enquanto a de homens negros nesse mesmo estrato (em geral servidores públicos com maiores salários) fica em 13,14%.
“A incapacidade de se retomar isso [tributação] é indicativo de uma permanência institucional de um racismo estrutural”, avalia a pesquisadora.
Os dados da Receita Federal sobre lucros e dividendos não consideram os rendimentos de sócios de micro e pequenas empresas optantes do Simples Nacional, que abarca companhias com faturamento de até R$ 4,8 milhões ao ano. Essa fonte de renda também pode ser classificada como um tipo de lucro ou dividendo e é igualmente isenta do IR.
Em 2021, esses pagamentos somaram R$ 175,6 bilhões, alta de 35,9% em relação aos R$ 129,2 bilhões declarados em 2020. Neste caso, o topo da pirâmide (1% mais rico) ficou com R$ 42,7 bilhões, cerca de um quarto dos rendimentos dessa fonte.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress