Repatriação de Israel teve sirenes, pedido de carteirada e jeitinho para pets

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sirenes de ataque aéreo, pedidos de carteirada, jeitinho para trazer pets e uma ação logística inédita marcaram a maior ação de repatriação de brasileiros de zonas de guerra da história, a Operação Voltando em Paz, que trouxe o último grupo de Israel na semana passada.

Proverbial operação de guerra, ela envolveu diretamente ao menos 156 tripulantes da Força Aérea Brasileira, 50 diplomatas e servidores do Itamaraty, além de pessoal na Defesa e na Justiça. À FAB cabia a intrincada logística, e às Relações Exteriores, organizar o embarque.

“A gente aprende muita coisa no Rio Branco [instituto que forma diplomatas], mas não a reservar passagem”, brinca Frederico Meyer, o embaixador brasileiro em Tel Aviv. Com a experiência de quem viveu a guerra Irã-Iraque servindo em Bagdá de 1980 a 1983, ele nunca havia passado por algo desta magnitude.

Foram 1.413 brasileiros e 53 pets os resgatados da guerra Israel-Hamas em oito voos. Dois problemas bem brasileiros se apresentaram de cara. O primeiro, a famosa carteirada. Segundo Meyer, houve pedidos de políticos e diplomatas, que foram negados.

Ele afirma que a fila foi respeitada. “Primeiro, moradores do Brasil, depois cadeirantes, grávidas, idosos e bebês. Havia parâmetros”, disse. Ao menos um líder evangélico com conexões políticas em Brasília viu o grupo que conduzia em Israel ser embarcado e se gabou disso, segundo deputados de seu partido.

Outra questão dizia respeito ao famoso jeitinho. Ele foi empregado em favor dos brasileiros que queriam trazer seus cães e gatos de volta pelos israelenses, que após conversas toparam ignorar as rígidas leis de embarque de animais do país.

CUSTOS AINDA SÃO DESCONHECIDOS

Os voos pagaram a conta política de a FAB ter comprado dois aviões de transporte de longo alcance no ano passado: os KC-30, nome militar dos Airbus A330-200 que eram da Azul, transportaram 90% dos repatriados.

Os restantes vieram em dois Embraer KC-390, uma aeronave de transporte tático militar. Ainda foram empregados um C-99, versão do EMB-145 da fabricante brasileira, para redistribuir passageiros, e dois VC-2, os Embraer-190 da Presidência que estão no Egito levando ajuda humanitária à Faixa de Gaza e aguardando uma chance de retirar 34 pessoas do território.

Os custos da operação ainda serão fechados e deverão sofrer com a opacidade do sigilo militar —a FAB não revela detalhes operacionais de seus aviões, como o valor da hora-voo dos aparelhos. Mas algumas contas básicas colocam sua escala na casa dos R$ 20 milhões.

São números imprecisos. Adotando como critério o preço médio de passagens Brasil-Tel Aviv, sempre com uma escala por não haver ligação direta, a ação teria ficado entre R$ 8,5 milhões e R$ 14 milhões.

Segundo pessoas com conhecimento do assunto, contudo, a hora-voo dos Airbus a serviço da FAB pode ficar entre R$ 50 mil e R$ 75 mil. Como foram 255 horas-voo ao total até aqui, a maioria no modelo, a conta pode ter ficado perto dos R$ 20 milhões.

Isso sem contar as despesas das tripulações, que voavam para Roma e pernoitavam antes de ir a Tel Aviv. Nos Airbus, eram 4 pilotos, 4 mecânicos e 10 comissários de bordo. Nos KC-390, 6 pilotos, 6 mecânicos e 2 comissários, devido ao tamanho menor e a necessidade de mais escalas. A diária no serviço público no exterior fica em torno de US$ 300 (R$ 1.500), dependendo do cargo ocupado.

As tripulações incluíam, no total, 12 médicos,14 enfermeiros e 8 psicólogos. Segundo a FAB, os principais problemas relatados eram crises de ansiedade devido à situação tensa, mas sem intercorrências sérias. E havia a alimentação: cerca de 3.000 refeições foram servidas.

O transporte dos brasileiros é gratuito. Os EUA, por exemplo, obrigaram seus cidadãos que pegaram aviões fretados ou um navio rumo a Chipre a assinar um termo prometendo o ressarcimento.

AÇÃO COMEÇOU EM VOO

A operação começou com um voo, no caso do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que havia deixado Recife a bordo de um Legacy da FAB com o comandante da Força, brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno. Eles iriam até a Suécia para fechar uma compra adicional de caças Gripen e a venda de KC-390 ao país nórdico.

O dia era o fatídico 7 de outubro, quando as imagens de terroristas do Hamas promovendo um ataque inaudito a Israel começavam a se espalhar pelo mundo. Com pouco mais de uma hora de voo, o ministro deu meia-volta.

Começou então uma operação complexa, que não foi isenta de ciúmes políticos entre os envolvidos. Pela natureza militar, a FAB tinha preponderância nas decisões, e o Itamaraty, a palavra final de assuntos diplomáticos.

À Presidência coube mais assistir, o que não agradou a alguns próceres do petismo federal, mas ao fim todos se deram por satisfeitos dado o retorno visto como muito positivo em imagem para o governo Lula, de resto pressionado para equilibrar sua posição histórica pró-palestinos.

Para os militares, foi uma oportunidade de se afastar do noticiário negativo decorrente da ligação de fardados com o golpismo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Quase 3.000 pessoas pediram inicialmente para sair, mas a normalização de alguns voos aliviou a pressão. Apenas um brasileiro não conseguiu embarcar: ele tinha dívidas em Israel e foi impedido de deixar o país.

A tensão da operação era óbvia. As sirenes de ataque aéreo tocavam incessantemente na região do aeroporto Ben Gurion, como puderam atestar os primeiros brasileiros a pousar lá. Sem orientação precisa das autoridades israelenses, os militares perceberam que algo estava errado quando viram soldados e funcionários do aeródromo correr para abrigos —para onde foram correndo.

Meyer e seu colega de Ramallah (Cisjordânia), Alessandro Candeas, estavam no Brasil quando a crise estourou, e conseguiram voltar no primeiro voo da FAB, pouco menos de 48 horas após o início da crise.

O processo para viabilizar a viagem é complexo. A FAB informava a rota pretendida às embaixadas brasileiras com jurisdição pelo caminho. Todo avião militar precisa de uma autorização específica para sobrevoar outro país, e foram obtidas 139 delas em 15 nações e 1 território autônomo espanhol, as ilhas Canárias.

AVIÃO MILITAR FOI ADAPTADO

O processo de embarque dos brasileiros era rápido, durando no máximo 3 horas entre pouso e decolagem, com reabastecimento em solo —missão dos mecânicos. Se os antigos Airbus da Azul eram estreantes em uma ação do gênero, os KC-390 já haviam participado de outra repatriação, a de brasileiros que quiseram deixar o Líbano na esteira da explosão que destruiu boa parte do porto de Beirute, em 2020.

Como avião pensado para uso militar, adaptações foram feitas. A FAB instalou um conjunto de poltronas encaixadas por meio de páletes modulares no KC-390. O jogo também trazia um banheiro e uma copa adicionais àquelas existentes na aeronave, amenizando para os 69 repatriados a situação algo claustrofóbica de voar quase 20 horas e fazer quatro pousos em um compartimento de carga.

Aqueles outros 69 que voaram no penúltimo voo de repatriação, contudo, não tiveram tal sorte, pois não houve tempo hábil de equipar o segundo KC-390 com o kit para passageiros. Eles vieram como os até 80 soldados transportados pelo avião viajam: sentados em bancos de lado, de frente uns para os outros.

“A repatriação foi a demonstração daquilo que melhor sabemos fazer: ser fraternos. A cada avião que pousava, a sensação de dever cumprido. Seguimos de prontidão, junto à FAB, ao Ministério das Relações Exteriores e ao Ministério da Justiça, para atuar nas próximas missões, sem deixar de lado o desejo de que o confronto cesse o quanto antes”, disse Múcio.

Resta agora o desenlace do drama na Faixa Gaza, onde 34 pessoas estão inscritas pelo Itamaraty para fugir do centro da retaliação israelense. Um dos VC-2 estará esperando o grupo no Egito, mas não há ainda sinal de quando o posto de trânsito de Rafah será aberto. O grupo tem 18 pessoas na cidade e 16, na vizinha Khan Yunis. “É uma inércia angustiante na fronteira”, diz Candeas.

O Egito planeja abrir a fronteira de Rafah nesta quarta (1º), segundo a imprensa local, mas apenas para permitir que palestinos feridos sejam tratados em hospitais egípcios.

IGOR GIELOW / Folhapress

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