Republicanos e democratas ignoram déficit nos EUA, pondo em risco economia global

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O déficit nas contas públicas dos Estados Unidos tornou-se motivo de ansiedade global, sobretudo em países emergentes como o Brasil. Mas os partidos Republicano e Democrata têm ignorado o tema na atual campanha eleitoral e, ao contrário do que seria recomendável, vêm sinalizando com políticas que devem ampliar ainda mais o rombo trilionário do país.

Pelos republicanos, Donald Trump promete, se eleito, renovar até o final de 2025 o corte de impostos concedido aos americanos em 2017. Projeções oficiais calculam que isso custaria cerca de US$ 3 trilhões nos próximos dez anos.

Do lado dos democratas, pouco se sabe ainda sobre os planos de Kamala Harris. Mas o atual presidente, Joe Biden (e seu partido), vinha sinalizando com mais gastos nas áreas social e da transição energética em um novo mandato, a exemplo do que foi feito nos últimos anos.

Nenhum dos partidos indica disposição em mexer nas duas principais causas do déficit americano: o sistema de aposentadorias (Social Security) e o Medicare, um fundo público de saúde para os idosos. Até o final desta década, as duas despesas devem representar mais de 60% do gasto do governo –excluindo da conta o pagamento de juros sobre a dívida pública.

O CBO (Congressional Budget Office), um órgão fiscal independente, projeta um déficit em 2024 de 7% do PIB (Produto Interno Bruto), atingindo US$ 1,9 trilhão –o equivalente a quase o PIB do Brasil.

Como comparação, o déficit fiscal do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no ano passado, motivo de grande preocupação no mercado brasileiro, foi de 2,3% do PIB -um terço do americano.

Nos últimos anos, os EUA têm mantido um déficit fiscal mais de três vezes superior à média das décadas do pós-Segunda Guerra e o dobro da média das economias avançadas.

A escalada do rombo aumentou a dívida pública bruta para US$ 33,1 trilhões no ano passado, o que representa 123% do PIB, segundo o Federal Reserve (o banco central americano). No Brasil, a proporção atingiu 74,3%.

O governo americano terá de rolar um terço de sua dívida em 2024. Para isso, precisará encontrar compradores para cerca de US$ 10 trilhões em títulos que emite. Com a escalada da dívida e do déficit, no entanto, investidores podem passar a exigir juros mais altos para financiar o país.

No final de 2019, antes da pandemia da Covid-19, os EUA pagavam 1,9% de juros ao ano para vender seus títulos no mercado e se financiar. Hoje, desembolsam quase 4%. Além dos déficits crescentes, os juros maiores fazem a dívida crescer mais rápido, agravando o quadro.

Para o economista e colunista da Folha de S.Paulo Samuel Pessôa, ainda não está claro se a taxa de juro dos EUA seguirá em patamar elevado para que o governo possa se financiar, já que o banco central americano deve começar em breve um ciclo de corte nos juros.

“Como os EUA são a praça financeira do mundo, o governo consegue se financiar a custo relativamente baixo, o que permite ao país manter déficits elevados. Mas, se por acaso, descobrirmos mais à frente que o novo patamar de juro real de equilíbrio, após o ciclo de queda, for maior do que o de antes da pandemia, aí pode haver um problema”, diz Pessôa.

Antes da pandemia, economistas falavam em um cenário de “estagnação secular”, em que os países conseguiam manter juros bastante baixos. Após a Covid-19, EUA e o resto do mundo se endividaram mais para fazer frente à crise sanitária; e agora investem pesadamente na transição energética, em mais gastos militares e têm necessidades crescentes de financiar seus sistemas previdenciários, dado o rápido envelhecimento da população.

“A dívida pública nos EUA vai crescer, e, em algum momento, o mercado pode sinalizar que não financia mais o déficit com juros tão baixos. Aí, a política vai ter que se mover”, diz Pessôa. Neste caso, governo e Congresso americanos teriam de partir para um cenário de aumento de impostos.

Como os EUA têm uma carga tributária em relação ao PIB relativamente baixa na comparação com outros países desenvolvidos, de cerca de 28%, haveria espaço para um ajuste. Como exemplos, os percentuais são de 46% na França, e 34% no Japão, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. “Mas será muito difícil os políticos se movimentarem antes de algum evento estressante no mercado”, afirma Pessôa.

Até agora, republicanos e democratas não apresentaram planos críveis para conter o déficit. Trump diz que poderá criar uma tarifa universal de 10% para produtos importados a fim de proteger empresas americanas. Isso não só aumentaria o preço de produtos no país (e a inflação) como geraria apenas US$ 300 bilhões ao ano, valor muito abaixo do necessário para cobrir o déficit.

Kamala aventa a possibilidade de aumentar o imposto cobrado das empresas, de 21% para 28%; e Biden havia prometido taxar mais as famílias ricas. As duas medidas podem ser politicamente difíceis, sobretudo se os democratas não conseguirem reconquistar a maioria na Câmara dos Deputados, perdida para os republicanos no final de 2022.

Neste contexto de déficit elevado, quanto mais subirem os juros de referência nos EUA, maior terá de ser a taxa que os demais países serão obrigados a pagar para seduzir investidores a financiar suas próprias dívidas.

No ano passado, os governos de todo o mundo somaram endividamento recorde de US$ 88,1 trilhões, segundo cálculos do Institute of International Finance, de Washington. Isso aumentou a competição global (com juros mais altos) para atrair investidores.

Para José Júlio Senna, pesquisador do Ibre-FGV e ex-diretor da Dívida Pública do Banco Central, quanto mais tempo os EUA demorarem para fazer um ajuste fiscal, pior será a situação para países como o Brasil.

“Se forem mantidos déficits altos, na casa de 6% a 7% do PIB, será mais difícil os juros caírem por lá, com repercussões negativas no Brasil, já que temos de pagar um prêmio de risco [para atrair investidores] acima da taxa norte-americana”.

Neste caso, juros mais altos no Brasil inibiriam o crescimento da economia e continuariam a aumentar o endividamento brasileiro, hoje a principal preocupação dos economistas e do mercado.

FERNANDO CANZIAN / Folhapress

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