Respeitar o descanso causa mudança radical, diz Tricia Hersey, a ‘Bispa do Cochilo’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Best-seller instantâneo, o livro “Descansar É Resistir – Um Manifesto”, lançado por Tricia Hersey nos Estados Unidos em 2022 e agora no Brasil pela Fontanar, foi uma tentativa da autora de trabalhar menos.

Depois de seis anos à frente do “Ministério do Cochilo”, um mix de movimento cultural com arte performática criado por ela, que se autointitula “Bispa do Cochilo”, Hersey percebeu que a mensagem que carregava tinha poder e decidiu lançar um livro. Assim falaria de uma vez, para todos os interessados, o que tinha para dizer.

E o livro “faria o trabalho por ela”, que poderia, então, ficar de folga, como defende que todos nós tenhamos coragem de fazer sempre que nosso corpo pedir. O que não imaginava é que o livro só aumentaria a demanda pela presença dela, que passou a ser convidada a dar palestras no mundo todo e a produzir mais material para ser consumido.

Logo ela, que bota a culpa da exaustão geral no capitalismo, que nos enxergaria não como humanos, mas como máquinas. O patriarcado e a supremacia branca são igualmente culpados, e são eles que estão por trás do que ela chama de “síndrome da mulher negra forte”, segundo a qual as mulheres negras seriam capazes de salvar o mundo sem pedir ajuda. Mas não pense que outras formas de governo se saem melhor na análise de Hersey.

“Todos esses sistemas que se pretendem sustentadores do mundo nos enxergam como peças de uma grande engrenagem. Comunismo, socialismo, patriarcado, capitalismo, não importa. Esses sistemas tentam remover nossa dignidade para continuar com o poder”, afirma à Folha de S.Paulo em entrevista por Zoom de sua casa em Atlanta, nos Estados Unidos.

Com outro livro lançado um ano depois, “The Nap Ministry’s Rest Deck: 50 Practices to Resist Grind Culture”, Hersey já tem um terceiro livro pronto para ser lançado em novembro —mas, desta vez, diz que vai aumentar o número de “nãos” aos convites que recebe.

Nem pense em oferecer uma viagem como forma de recompensa pelo trabalho dela. Apesar de adorar conhecer lugares novos, Hersey não se conforma com a ideia de que é preciso sair de casa para descansar.

“Fico furiosa quando percebo que o capitalismo pegou a mensagem que eu defendo, fez uma roupagem de luxo e vende a ideia de que as pessoas precisam viajar para descansar. Viajar para dormir! Isso é uma balela.”

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Pergunta – O seu ‘Ministério do Cochilo’ foi criado em 2016. Já se passaram oito anos. Alcançou o que queria?

Tricia Hersey – Quando eu comecei, meu único objetivo era fazer eventos na minha cidade para que uma ou duas outras pessoas se sentissem, de alguma forma, abraçadas, sabendo que mais gente se sente exausta o tempo todo e que isso não é normal.

O que aconteceu superou um milhão de vezes meus objetivos. Eu realmente tinha expectativas muito baixas. Queria que a mensagem chegasse ao mundo e que algumas pessoas, de alguma forma, se sentissem menos sozinhas. Eu não imaginava que mudaria a vida de ninguém.

P. – Você achou que isso mudaria a sua vida? Sei que você mudou a sua maneira de enfrentar o cansaço alguns anos antes, certo?

T. H. – Sim, foi quando comecei a experimentar o descanso e a desacelerar o ritmo e a realmente observar meu corpo, minhas sensações e respeitar as mensagens que ele me dava o tempo todo. Logo que fiz isso, comecei a ver mudanças radicais.

Tudo começou a fazer mais sentido, minhas notas melhoraram, me tornei uma mãe mais serena, minha saúde melhorou. Foi tão intenso que me deu a inspiração e a coragem de levar essa ideia a outras pessoas.

Foi tão simples e recompensador mudar a minha vida que imaginei que talvez outras pessoas pudessem se beneficiar também. Mas nunca imaginei que viraria uma autora best-seller que viaja por aí dando palestras, acho meio surreal.

P. – Qual sua explicação? Parece realmente meio louco que alguém tenha que dizer que você está cansado e precisa tirar um cochilo, não?

T. H. – Eu sei! Todos os dias eu me pego pensando “uau, não posso acreditar que dizer ‘vá tirar uma soneca, descanse, deite-se, durma, seu corpo precisa’ ainda seja visto como uma mensagem radical”.

Minha explicação é que nossa cultura está em uma crise profunda quando se trata de privação de sono. O capitalismo e outros sistemas, como o patriarcado, realmente estão fazendo um esforço enorme para nos esmagar.

E minha mensagem tocou algumas pessoas de maneira profunda, não apenas na mente, mas de forma real, no corpo e na alma. Muitas vezes eu falo com pessoas que começam a chorar, e eu fico chocada toda vez. Pergunto sempre “por que isso te faz chorar?” E elas respondem: “Estou tão cansada.”

P. – Ainda vê a necessidade de ser uma ativista por essa causa ou o livro já fez o trabalho?

T. H. – Eu pensei que isso aconteceria, mas na verdade foi o oposto. Acho que, porque o livro tocou tantas pessoas, a mensagem se aprofundou e se tornou um movimento. Mas acredito que esta seja uma mensagem de direitos humanos que permanecerá para sempre, porque não vejo o capitalismo mudando durante a minha vida.

O objetivo é que simplesmente comecemos a nos ver de novas maneiras e a cuidar uns dos outros também. Espero não precisar ser a “Bispa do Cochilo” para sempre, espero que a comunidade não precise sempre de alguém para dizer “vá tirar uma soneca”. Basta ouvirmos nosso corpo. Temos que conseguir fazer isso por conta própria.

P. – Como chegamos a esse ponto, de precisar de alguém para nos dizer ‘pare, você está fazendo coisas demais’?

T. H. – Comecei esse trabalho fazendo uma análise histórica. Fui estudar nossa cultura, a história do capitalismo, do comércio transatlântico de escravos, do trabalho que meus antepassados foram forçados a fazer.

Saber nossas origens é como botar uma luz nos problemas atuais. Conectando nossa história com nossos corpos, podemos enxergar o descanso e o sono como movimentos de justiça.

P. – O fato de o movimento ter se tornado tão relevante não a fez pensar em como é possível que ninguém tenha feito isso antes?

T. H. – É fascinante que eu tenha sido a primeira, é uma sorte para mim e uma falta de sorte para as gerações que não tiveram essa voz. Não sei explicar como nem por quê, mas cheguei no momento certo. Eu simplesmente juntei a receita certa para trazer a mensagem.

P. – Acredita que o fato de a gente ter se desconectado tanto da natureza que chegamos ao ponto de fazer uma entrevista pela tela de um computador é um dos culpados?

T. H. – Sim, cada vez mais. Estamos desmembrados e desconectados, mas achamos que estamos ultraconectados porque temos as máquinas. Na verdade, nós viramos as máquinas.

Não conseguimos desacelerar sequer para nos ver, quanto mais ver o que está ao nosso redor. Isso também nos torna muito mais solitários. A solidão é um problema real, e para forçarmos nossos corpos até o ponto de exaustão, precisamos estar desconectados de nós mesmos. E é isso o que o capitalismo fez com nossas vidas.

Não é natural, não é normal trabalhar tanto e continuar na pobreza. Ou sair da pobreza mas continuar sentindo a mesma necessidade de ter cada vez mais dinheiro, cada vez mais coisas. O que é natural é que um corpo precisa parar.

P. – Quando eu era jovem e tinha muito sono, minha mãe dizia uma frase para me levantar da cama: ‘a preguiça é o pior dos vícios’. Existe algo semelhante na cultura dos Estados Unidos?

T. H. – [Risos] Esse ditado é terrível! Nos Estados Unidos temos uma outra lenda, chamada “síndrome da mulher negra forte”. É um instrumento de opressão às mulheres negras que começou com as mulheres escravizadas, que davam à luz sem tirar um único dia de folga. Elas trabalhavam até a hora de o bebê nascer, aí davam à luz, entregavam o bebê para uma parteira e a mãe continuava o trabalho.

As mulheres negras sempre tiveram que dar conta de tudo sozinhas neste país, cuidam dos filhos delas e de quem não pode cuidar, trabalham, tomam conta da casa. E no final ganharam esse rótulo tóxico que traz essa ideia de que podemos salvar o mundo e fazer tudo sem ajuda, sem apoio, sem sono, sem dinheiro. É uma ideia ligada ao patriarcado, mas também traz o componente racial.

Não somos mais escravizadas, mas internalizamos isso mentalmente. Como mulher negra criada por uma mulher negra, sinto que elas olham para mim como se eu estivesse falando uma linguagem que nunca ouviram. Eles simplesmente não entendem de imediato o que eu digo. Chamo isso de lavagem cerebral.

P. – Você culpa muito o capitalismo como o motor que nos torna viciados em produtividade, mas em países comunistas esse cenário não me parece melhor. Vê sua mensagem chegando a países comunistas?

T. H. – Ah, eu espero que sim. Todos esses sistemas que se pretendem sustentadores do mundo nos enxergam como peças de uma grande engrenagem. Temos que tirar isso da nossa frente e nos ver como humanos respirantes e vivos que foram escolhidos para estar aqui.

Comunismo, socialismo, patriarcado, capitalismo, não importa. Esses sistemas criados pelo homem tentam remover nossa dignidade para continuar com o poder, e isso é um problema. Espero conseguir chegar aos países comunistas, mas sei que esse é um caminho bem complexo.

P. – O movimento tem sido bem-sucedido e o livro virou um best-seller. Isso a fez ficar mais ocupada do que gostaria?

T. H. – Meu Deus, sim. Eu tive que impor limites ainda mais profundos do que eu já tinha. É difícil, não vou mentir, tem sido um desafio: 2023 foi um dos meus anos mais ocupados e não quero repetir isso nunca. Fiz 26 voos longos, estava no aeroporto o tempo todo viajando. Cada fim de semana ia a um lugar diferente. Quando este ano começou, eu disse: “Nunca mais”.

Apesar de ter dito não a provavelmente 90% das coisas que me pediram, ainda fiquei muito ocupada. Tive que pedir ajuda, contratar assistentes, agentes, empresários. Antes eu fazia tudo sozinha. Mas eu tenho uma coisa boa, não sinto a menor vergonha ou culpa em dizer não.

P. – Quais os seus próximos projetos?

T. H. – Eu tenho um novo livro saindo em novembro, e vou fazer uma turnê de lançamento, mas bem menor. Vou a apenas duas outras cidades. Eu tiro uma soneca à tarde todos os dias e tenho uma prática de descanso. Não começo a trabalhar antes de um certo horário, paro em um certo horário e nunca trabalho nos finais de semana.

P. – Quer dizer que podemos perder as esperanças de você vir ao Brasil?

T. H. – Nunca! O Brasil está no topo da minha lista de lugares para os quais quero viajar. Meu plano é ir em 2025. Eu amo viajar como hobby, mas fico furiosa quando percebo que o capitalismo pegou a mensagem que eu defendo, fez uma roupagem de luxo e vende a ideia de que as pessoas precisam viajar para descansar. Viajar para dormir! Isso é uma balela.

A não ser que a pessoa viva em um ambiente muito estressante, o melhor lugar para relaxar é a própria casa. Temos que descansar aqui, agora.

DESCANSAR É RESISTIR

– Preço R$ 59,90 (192 págs.); R$ 19,90 (ebook)

– Autoria Tricia Hersey

– Editora Fontanar

– Tradução Steffany Dias

TETÉ RIBEIRO / Folhapress

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