Redação
Começou com um vaga-lume. Em vez de entrar no pote em que estavam outros de sua espécie, o inseto ficou preso na rosca e foi dividido ao meio pela tampa. De repente, a cabeça do animal passou a comer o abdômen, e várias ideias se acenderam na mente do garoto que observava a cena.
“Ele não sabe que está se comendo? Não sabe onde começa e termina?”, pensou Alysson Muotri. A lanterna de vaga-lumes nas imediações da casa de praia da família, em Caraguatatuba (SP), não deu certo. Mas as questões daquela época, no início da década de 80, levaram o menino à ciência e, em 2024, ele poderá apreciar milhões de luzes diretamente da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).
Muotri deverá ser o primeiro cientista brasileiro no espaço, para onde desde 2019 tem enviado os chamados minicérebros organoides cerebrais criados com as chamadas células iPS (ou células-tronco pluripotentes induzidas).
A partir de uma amostra de pele, por exemplo, os cientistas usam fatores especiais para fazer as células “voltarem no tempo”, adquirindo uma versatilidade semelhante à das células-tronco embrionárias. Depois, empregam substâncias que fazem as células iPS se especializar em neurônios. Aos poucos, esses neurônios se conectam e formam uma estrutura tridimensional que imita de forma simplificada a organização do córtex cerebral humano, daí o nome “minicérebros”.
Os organoides são construídos no laboratório do pesquisador, na Califórnia, e têm sido levados em missões na ISS. A ideia é analisar como o cérebro se desenvolve e qual o impacto neurológico da microgravidade.
“A expectativa com a viagem é altíssima”, diz o pesquisador. “Acredito que a cura para o autismo e para o Alzheimer possa estar no espaço. Ele vai acelerar essas descobertas e os tratamentos.”
Como os minicérebros possuem o mesmo material genético das pessoas que doaram a amostra de pele ou o dente de leite, é esperado que eles apresentem os mesmos padrões de desenvolvimento dos cérebros originais. Isso permite analisar variações nos neurônios ao longo do tempo e seu impacto no desenvolvimento de demências e do TEA (transtorno do espectro autista) e o espaço acelera esse processo.
Muotri ressalta, porém, que ao falar em cura e tratamento está considerando indivíduos com autismo severo. “Pessoas com autismo que têm uma vida independente, trabalham e têm sua família querem inclusão, a liberdade de ser e pensar de forma diferente. Me refiro àqueles que precisam de tratamento, que têm uma série de comorbidades associadas ao autismo.”
POR QUE SOMOS DIFERENTES?
Biólogo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e doutor em genética pela USP (Universidade de São Paulo), Muotri enveredou pela neurociência para tentar entender o que nos torna humanos. Por que, ao contrário dos vaga-lumes, temos consciência do nosso corpo? Por que somos diferentes de outras espécies?
As primeiras pistas que encontrou indicavam que as respostas estavam na sociabilidade do ser humano, e o cientista quis compreender melhor como atua esse cérebro social. “Como geneticista, uma forma de olhar para a questão é procurar exemplos em que mutantes mostram como algo não funciona, estudar como não funciona para entender o funcionamento”, diz.
No quesito sociabilidade, esses perfis diferentes são encontrados em pessoas com TEA, que têm uma redução na capacidade de interação social, e naqueles com síndrome de Williams, extremamente sociáveis. Muotri decidiu, então, estudar essas duas condições genéticas e aproveitou características da Califórnia para realizar a investigação.
“O governo George Bush havia proibido o uso de células-tronco embrionárias e Arnold Schwarzenegger, então governador, peitou a proibição e incentivou as pesquisas.”
UM PAI NO LABORATÓRIO
Muotri já trabalhava com TEA quando conheceu a modelo Andrea Coimbra e o filho dela, diagnosticado com autismo severo. Os três tornaram-se uma família, e o cientista virou pai.
“O Ivan me trouxe uma perspectiva diferente do que é o espectro e a vontade de ajudar o outro”, avalia o pesquisador, que passou a buscar mais ativamente formas de atenuar o sofrimento do filho e de outras pessoas com autismo severo.
Muotri intensificou o contato com famílias de crianças e adolescentes com TEA para ele a parte mais preciosa de seu trabalho e anualmente realiza um encontro que reúne cientistas, pessoas com autismo e familiares.
Além do cargo na UCSD, o cientista é fundador da empresa de biotecnologia Tismoo, voltada à saúde de pessoas com transtornos neurológicos, e na missão mais recente na ISS, no ano passado, enviou minicérebros derivados de pessoas com autismo.
“Os resultados foram completamente inesperados. Confirmamos vias moleculares dentro dos neurônios que desconfiávamos estar envolvidas com autismo, mas aqui em terra não conseguíamos descobrir, então foi transformador”, diz.
DESAFIO DE ENVELHECER OS MINICÉREBROS
Os organoides cerebrais permitem estudar o neurodesenvolvimento porque mimetizam a construção cerebral desde as primeiras fases do feto até o equivalente a alguns meses após o parto. Mas param por aí. “Por mais que a gente consiga deixar esses organoides envelhecendo no laboratório por três, quatro anos, eles não adquirem características de alguém com essa idade, ficam estagnados.”
Ao buscar formas de amadurecer os minicérebros, o cientista se aproximou das pesquisas espaciais, que indicavam maior rapidez no envelhecimento de astronautas.
Em abril de 2019, a Nasa (agência espacial americana) publicou as mudanças observadas após a permanência de um astronauta na ISS e de seu irmão gêmeo na Terra. O trabalho mostrou que o envelhecimento precoce era revertido, e Muotri discordou dessa conclusão.
Para ele, provavelmente, havia ocorrido a substituição natural das células da pele e do sangue, dando a impressão de que o efeito era temporário. O cérebro, porém, não tem essa capacidade de regeneração, então as células nervosas do astronauta possivelmente continuariam mais velhas.
A princípio, ninguém deu bola para essa ideia e o brasileiro não conseguiu financiamento para prová-la. A saída foi custear o estudo com as próprias economias e foi assim que, ainda em 2019, ele enviou os primeiros minicérebros para o espaço.
Com a comprovação de que em órbita os organoides cerebrais amadurecem mais rápido, surgiram parceiros incluindo a própria Nasa e novas viagens.
POR QUE O CIENTISTA BRASILEIRO VAI AO ESPAÇO?
Tradicionalmente, os minicérebros são enviados para a ISS em um recipiente do tamanho de uma caixa de sapatos. Metade corresponde a uma bateria para que o sistema de microfluidos circule e nutra os organoides e a outra parte contém os minicérebros.
Esse modelo é prático porque o astronauta precisa apenas plugar a caixa em uma fonte de energia, porém é muito limitado do ponto de vista da experimentação. Os cientistas em terra não têm a possibilidade de manusear e analisar o material em tempo real.
Essa limitação levou Muotri a propor à Nasa treinar os astronautas para a manipulação dos minicérebros. A proposta não avançou e foi substituída por outra opção: ele mesmo ir ao espaço.
O cientista passou nos testes físicos e psicológicos e deve passar por um treinamento de seis meses para conhecer os módulos que compõem a ISS e simular os experimentos que realizará lá.
“Acreditamos que, num único experimento tripulado, conseguiremos fazer análises que levariam até dez anos”, afirma. “Esperamos validar dados que encontramos em outras missões e descobrir qual é o mecanismo de envelhecimento dos neurônios. Se conseguirmos isso, poderemos aplicar no estudo de demências e no rejuvenescimento do cérebro”.
O projeto da viagem, prevista para novembro de 2024, foi apresentado ao presidente Lula e à ministra Luciana Santos no mês passado. Segundo Muotri, a iniciativa foi bem recebida e há tratativas com o governo para aporte de recursos e ampliação da parceria entre o laboratório na Califórnia e pesquisadores no Brasil. “Seria um sonho trabalhar cada vez mais perto dos meus colegas brasileiros e ajudar a levar projetos deles para o espaço”.
STEFHANIE PIOVEZAN