SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos 56 anos, o pedreiro Marcos Roberto Meli diz que até hoje não consegue definir muito bem o que sente em relação ao fato de ter sido arrancado dos pais assim que ele nasceu. Nem um colo da mãe na hora do parto, nada. Do hospital, foi levado para uma creche e depois para um educandário para ser criado por freiras.
Era essa a política do país, naquela época, para os filhos de portadores de hanseníase.
Depois de mais de uma década de um movimento que luta por indenização do Estado, Marcos e outros cerca de 14 mil brasileiros aguardam o início do pagamento de uma pensão finalmente concedida a filhos de portadores de hanseníase separados dos pais entre os anos 1930 e 1980. A estimativa do Morhan (Movimento de Reintegração dos Acometidos pela Hanseníase) é de que 40 mil bebês tenham sido retirados dos pais, sendo que a maioria já morreu.
A nova lei, que concederá a seus beneficiados um salário mínimo mensal e vitalício, foi aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente Lula (PT) em dezembro. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, um novo decreto será publicado para regulamentar o processo de requerimento da pensão, com a lista de documentos necessários. As solicitações serão analisadas por uma comissão interministerial.
Marcos teve participação direta na batalha por essa indenização e chegou a se encontrar com Lula por integrar uma comissão de filhos de portadores de hanseníase. “A gente ia juntando as economias, um ajudava o outro a pagar as viagens a Brasília para conversar com deputados e senadores”, conta ele.
Com a aprovação da lei, o pedreiro espera que o pagamento da pensão se inicie brevemente e que, com ela, consiga ter melhores condições para se casar e ter filhos. Atualmente, mora com um casal de idosos, portadores de hanseníase, na colônia de Pirapitingui, em Itu (interior de SP).
Apelidado de Pira, foi o maior asilo-colônia para isolamento obrigatório de pessoas com hanseníase construído no estado. Com 5.000 moradores, tinha cadeia, velório, cemitério, pequenas fábricas, farmácia, mercearia, sapataria e outros estabelecimentos.
Até Redação de jornal, estação de rádio e um cassino com bar, cinema e bailes aos sábados “consolidavam a ilusão de uma cidade”, conforme narra a historiadora Katia Auvray em “Cidade dos Esquecidos – A Vida dos Hansenianos Num Antigo Leprosário do Brasil” (ed. Mirarte; 246 págs.; R$ 70). O livro, que teve uma reedição lançada no ano passado, é resultado de minuciosa pesquisa sobre a colônia.
Os pais de Marcos foram levados para o Pira na infância, retirados de suas famílias quando foram diagnosticados com a doença. A prática era de uma verdadeira caçada, muitas vezes com denúncias feitas pelos próprios familiares.
Os asilos-colônias operaram no Brasil com isolamento compulsório entre 1930 e 1980, de acordo com Thiago Flores, diretor jurídico do Morhan.
Ele é também personagem dessa história do Brasil, “mas em um sentido oposto”, segundo diz. Quando as práticas de segregação foram abandonadas no país, na década de 1980, moradores dos asilos-colônias começaram a adotar crianças, e Thiago, nascido em 1986, foi adotado por um casal portador de hanseníase em Betim (MG).
Já Marcos, que havia sido levado para uma creche e depois para um educandário de Carapicuíba (na Grande São Paulo), foi autorizado a morar no asilo-colônia de Itu com os pais em 1980, aos 12. Antes disso, podia visitá-los apenas uma vez por ano.
Um ônibus fazia o transporte das crianças, que eram proibidas de passar a noite no local. “Eram encontros estranhos, a gente nem se conhecia, e as crianças sentiam vergonha e até medo dos pais”, conta. “Não entendíamos por que estávamos separados. Era uma sensação de vazio, eu me sentia um estranho na sociedade”, diz.
Marcos se lembra de uma vez que o pai conseguiu autorização para ir ao educandário. “Quando ele chegou, corri para o colo da freira.” Quando foi morar com os pais, a convivência foi bem difícil. “Não tinha como sentir aquele amor de pai e mãe, eu não me sentia em casa”, lembra. “Aos poucos, depois de muito tempo, a gente foi pegando amor, e eu tinha mais liberdade com eles e até conseguia sorrir.”
Desde bem jovem, passou a se dividir entre o trabalho e os cuidados com os pais. Com a mãe, teve menos tempo. Ela morreu em 1999 em decorrência do agravamento da doença. Já a morte do pai foi em 2017, e Marcos conseguiu desenvolver com ele “uma relação de bastante carinho”, em suas palavras.
Ele diz que a questão que mais fazia os pais sofrerem é a dúvida sobre o destino do primeiro filho do casal, nascido um ano antes de Marcos. “Quando ele tinha 1 ano, disseram que tinha morrido. Mas meu pai não pôde ver o corpo e não respondiam para ele onde o bebê tinha sido enterrado”, conta. “Tinha muita história de que essas crianças eram doadas, até vendidas. Meu pai morreu achando que o filho está vivo. Também acredito nisso.”
Após a morte do pai, Marcos foi obrigado a deixar a casa em que eles moravam no asilo-colônia. Posteriormente, aceitou a oferta de um casal de idosos residente do local para ir morar com eles e ajudá-los nos cuidados exigidos pela doença.
O antigo asilo-colônia de Itu abriga 73 moradores (ex-pacientes) e 124 familiares e agregados, segundo dados de julho passado. Tombado pelo Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo em 2017, tem hoje um ar de cidade fantasma, com construções degradadas e cobertas por matagal. No local funciona o Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, referência no atendimento à hanseníase e que tem 175 pacientes.
A hanseníase é uma doença de pele que provoca manchas, pode gerar deficiências físicas e outras complicações. Há cura, que é mais fácil e rápida quanto mais precoce for o diagnóstico. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil ocupa atualmente a segunda posição do mundo entre os países que registram casos novos. Foram mais de 20 mil diagnósticos em 2023, de acordo com a Morhan –em todo o mundo, são 200 mil anuais.
O bacilo causador da hanseníase é transmitido por meio de tosse, espirro ou fala de alguém que tem a doença e não recebeu o tratamento adequado. O contágio exige um contato prolongado, não é transmitido por abraço ou compartilhamento de objetos. Marcos e Thiago, como tantos filhos de portadores de hanseníase, jamais foram infectados.
LAURA MATTOS / Folhapress