Revisão do Cadastro Único, do Bolsa Família, esbarra em sucateamento e desconhecimento de regras

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O desconhecimento nos municípios sobre as regras do programa Bolsa Família e o apagão de investimentos na rede de assistência nos últimos anos desafiam o atual governo na tarefa de revisar e atualizar o Cadastro Único de programas sociais.

A medida é considerada crucial para fazer os benefícios chegarem a quem realmente precisa, mas tem esbarrado na desinformação, na falta de capacitação dos agentes que atuam na ponta e no desmonte dos centros de atendimento.

“Nós estamos vivendo um momento como nunca houve. Não dá para falar ‘isso daqui já foi visto lá atrás, então vamos repetir o processo'”, diz à Folha Eliane Aquino, secretária Nacional de Renda de Cidadania. O órgão é o responsável pela gestão do Bolsa Família dentro do MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome).

A Senarc, como é chamada a secretaria comandada por ela, trabalha em conjunto com outra área, a Sagicad (Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único), para promover as mudanças no CadÚnico, instrumento que é a base de mais de 30 políticas sociais no Brasil —entre elas, o Bolsa Família. Mas o processo tem avançado a passos mais lentos do que o imaginado.

Ainda na transição, a equipe técnica diagnosticou uma situação de “calamidade”, na qual o mais evidente dos problemas era a explosão de cadastros de famílias unipessoais (aquelas com um único integrante).

A quantidade dessas famílias saiu de 1,8 milhão em dezembro de 2018 para 5,5 milhões em outubro de 2022 —uma alta de 197%. No mesmo período, o número das demais famílias no Cadastro Único subiu 21%.

O governo ainda se debruça sobre os dados para compreender o fenômeno, que pode ter raízes nas regras do Auxílio Brasil, lançado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) na tentativa de enterrar o nome do Bolsa Família e cujo valor mínimo de R$ 600 por família possivelmente incentivou a multiplicação dos cadastros.

Outra parte da explicação, porém, pode vir da mudança comportamental dos brasileiros, diante de indícios de aumento real no número de pessoas vivendo sozinhas no país.

O desafio do governo é identificar, com precisão, quem de fato é unipessoal e quem está burlando o cadastro, corrigir os problemas e incluir quem precisa e ainda está fora do alcance dos programas.

Tudo isso num contexto de reestruturação da rede Suas (Sistema Único de Assistência Social), que foi sucateado. Os repasses caíram de R$ 2,4 bilhões em 2019 para R$ 905,7 milhões em 2022. No Nordeste, três municípios dividiram um único assistente social.

A secretária Eliane Aquino admite que o trabalho avançou menos do que o esperado. “A gente achou que ia dar uma diminuída, mas ainda é um número alto. Não diminuiu o quanto a gente esperava”, afirma.

Em julho, havia quase 1 milhão de famílias habilitadas para receber o Bolsa Família, mas ainda fora do programa por falta de orçamento disponível —o que se costuma chamar de fila de espera. Dessas, cerca de 430 mil famílias eram unipessoais, o equivalente a 34%. Trata-se de um número semelhante ao de lares chefiados por mulheres com filhos, o que não corresponde à realidade percebida nas estatísticas do país. O ministério vê isso como um indício de persistência dos problemas.

“O IBGE [órgão responsável pelo Censo Demográfico] já está falando que o percentual de unipessoais no país vai ficar entre 16% e 18%, no máximo. Eles devem soltar isso agora, no segundo semestre. Dentro da nossa base de dados, o número é maior”, diz a secretária. A proporção de famílias unipessoais está em 23% no público do Bolsa Família e chega a 35% no âmbito do CadÚnico.

“Qual é o grande perigo? Se a gente não tomar os cuidados agora, daqui a pouco o programa deixa de ser Bolsa Família e se torna um ‘Bolsa Pessoa’.”

O governo vê, em primeiro lugar, um problema de desinformação. “Na ponta, as pessoas mal sabem o regramento do programa. Se você perguntar: quais são os critérios de elegibilidade do programa? Quem é que tem direito de verdade? Por que sai? Por que entra na regra de proteção? As pessoas não sabem”, diz Aquino.

Há também uma incompreensão em relação ao conceito de família para o CadÚnico, que é diferente do registro civil. No cadastro de programas sociais, família é quem divide o mesmo teto, a mesma renda e as mesmas despesas —não importa se são parentes próximos, distantes ou por laço afetivo.

O segundo problema está ligado ao primeiro, pois o desconhecimento é compartilhado por boa parte dos mais de 35 mil colaboradores que operam o Cadastro Único no cotidiano dos municípios e que deveriam zelar pela qualidade das informações. “Passamos pelo menos dois anos sem dar capacitação nenhuma”, afirma o técnico Walter Shigueru Emura, diretor da Secretaria do CadÚnico.

Ao assumir, a atual gestão deparou-se com uma equipe “muito crua” na ponta. O MDS retomou as ações de formação, mas leva tempo até repor a perda de conhecimento acumulado.

O governo também adotou procedimentos mais rigorosos para famílias unipessoais. Antes, bastava a declaração do cidadão e a apresentação de documentos ao agente público no Cras (Centro de Referência de Assistência Social). Agora, o protocolo exige a assinatura de um termo de responsabilidade e a anexação dos documentos digitalizados. As prefeituras também devem visitar a residência para ver se aquela pessoa realmente vive sozinha.

“A gente pensa, constrói, arruma dinheiro, mas não operacionaliza. Quem verifica a vida daquela família é o município. Precisamos chamar a atenção deles de que buscar a informação correta das famílias é fundamental”, afirma Aquino.

A partir das diversas ações de qualificação do CadÚnico, o MDS já cancelou, desde março, 2,37 milhões de benefícios indevidos no Bolsa Família, por motivos variados: renda acima do limite, cadastro desatualizado, óbito, entre outros. Além disso, 1,6 milhão foram excluídos do cadastro por não se enquadrarem nos requisitos.

O cruzamento de dados com o Cnis (Cadastro Único de Informações Sociais), iniciado em junho, ajudou nas exclusões e ainda permitiu detectar 2,18 milhões de famílias com renda familiar por pessoa entre R$ 218 e R$ 660 (meio salário mínimo). Elas entraram na regra de proteção do Bolsa Família, que garante metade do benefício por até dois anos. Outras 300 mil ultrapassaram até mesmo o limite de R$ 660 e foram excluídas.

O MDS espera que a divulgação do Censo de 2022 ajude a clarear o cenário da pobreza e da extrema pobreza no país, que até então contava com dados defasados, de 2010. Embora a estatística do Censo não sirva como uma trava para o número de benefícios em cada município, ela será uma referência importante para o governo traçar sua estratégia.

“Talvez tenha municípios com o unipessoal muito acima ou abaixo da média, então vamos poder focar um pouco melhor a nossa análise”, diz Emura.

Segundo ele, é possível usar os dados do Censo para induzir a ação das prefeituras, com metas para atualização cadastral. Se o número de beneficiários estiver menor do que o índice de pobreza indicado nas estatísticas, talvez seja necessário fazer uma busca ativa. Se estiver maior, é possível demandar revisões.

“É uma discussão de política. Tem várias possibilidades de utilização. Por exemplo, para efeito de repasse de recursos”, afirma o diretor.

A secretária Eliane Aquino defende o processo de revisão cadastral para que o benefício chegue às famílias que realmente precisam. “O unipessoal que está numa base familiar e mesmo assim recebe o benefício está tirando de outra família”, afirma.

“Poucos programas têm a força que o Bolsa Família tem. Mas precisa entrar no eixo. Não dá ainda para falar que está pronto. Ele está em reconstrução”, diz.

VEJA AS REGRAS DO CADASTRO ÚNICO

O que é o Cadastro Único?

É uma base de dados que mantém registro de quem são, onde moram, como vivem e do que necessitam as famílias de baixa renda no Brasil. Elas precisam se cadastrar para acessar programas sociais como o Bolsa Família, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e a tarifa social de energia, entre outros. São mais de 30 políticas federais que usam o CadÚnico como referência, sem falar em programas estaduais e municipais.

Quem pode se registrar no CadÚnico?

Famílias que vivem com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa (equivalente hoje a R$ 660). Acima desse valor, só é possível se cadastrar para programas ou serviços específicos.

Qual é o conceito de família do CadÚnico?

Pessoas que vivem na mesma casa e compartilham a mesma renda ou despesa, independentemente do grau de parentesco.

Como fazer o cadastro?

O responsável familiar, maior de 16 anos e preferencialmente do sexo feminino, presta as informações por meio de entrevista, no centro de assistência ou durante visita do agente municipal. Ele precisa apresentar documentos de todos os integrantes da família, principalmente o CPF.

Há um protocolo específico para famílias unipessoais?

Sim. Os municípios devem cobrar a assinatura de um termo de responsabilidade e anexar no sistema do CadÚnico versões digitalizadas dos documentos do beneficiário. Além disso, são realizadas visitas domiciliares para verificar se a pessoa vive sozinha de fato.

O que é a atualização cadastral?

As famílias devem atualizar seus dados num prazo máximo de 24 meses a partir da última entrevista, ou antes disso quando houver alteração na composição familiar, no endereço ou na renda da família.

VEJA AS REGRAS DO NOVO BOLSA FAMÍLIA

Quem tem direito?

Famílias com renda familiar por pessoa de até R$ 218 inscritas no Cadastro Único. A renda familiar por pessoa é a soma de todas as rendas do lar, dividida pelo número de membros.

Como o benefício é calculado?

Há um benefício básico por pessoa. Cada integrante da família recebe R$ 142 mensais. Há ainda a garantia de um pagamento mínimo de R$ 600 por família, ou seja, se a soma dos benefícios não for suficiente, o governo fará o repasse de um valor complementar para assegurar esse piso.

O programa também prevê um adicional de R$ 150 por criança de 0 a 6 anos, e outro de R$ 50 para crianças e adolescentes entre 7 e 18 anos incompletos, bem como para gestantes e nutrizes.

A concessão é automática para quem faz o cadastro?

Não. O governo realiza um protocolo de habilitação, que consiste em processar as informações, verificar os requisitos e identificar públicos prioritários (indígenas e quilombolas, por exemplo). Caso a família se enquadre nas regras do programa, ela é habilitada. A concessão do benefício depende de espaço no orçamento.

Arranjei um emprego com carteira assinada, vou perder o benefício do Bolsa Família?

Não necessariamente. Se, ao incorporar o salário do novo emprego, a renda familiar por pessoa ficar entre R$ 218 e R$ 660, o beneficiário entrará na regra de proteção, recebendo metade do benefício por até dois anos.

Se a renda familiar por pessoa ultrapassar os R$ 660, o beneficiário pode solicitar o desligamento do Bolsa, com direito ao chamado “retorno garantido” caso perca o emprego ou outra fonte de renda. O retorno garantido só vale para quem tiver saído de forma voluntária do programa.

IDIANA TOMAZELLI E THIAGO RESENDE / Folhapress

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