Revolta evangélica nos EUA contra escravidão foi ensaio da Guerra Civil há 165 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Insurreição servil: o arsenal em Harpers Ferry no poder de insurgentes; debandada generalizada de escravos; soldados dos Estados Unidos marcham até o local.”

Essa foi a manchete do jornal The New York Times em 18 de outubro de 1859 noticiando um dos acontecimentos históricos menos conhecidos, mas mais marcantes dos EUA: quando um religioso evangélico liderou um grupo de 22 abolicionistas radicais, a maioria brancos, e atacou um arsenal do Exército em uma tentativa de armar os negros escravizados do sul do país e recriar a Revolução Haitiana em solo americano.

O ataque há 165 anos contra a cidade de Harpers Ferry, no que hoje é o estado da Virgínia Ocidental, chocou o país, energizou os dois lados da disputa sobre a escravidão e é compreendido hoje como um ensaio do conflito que devastaria os EUA pouco mais de um ano depois entre os estados do sul, escravagistas, e os do norte.

O idealizador do ataque, cujo legado continua a ser discutido, foi o religioso John Brown, um homem branco que se radicalizou contra a escravidão depois de anos no movimento abolicionista. Descrito como uma figura messiânica, heroica ou até terrorista, Brown era um admirador do revolucionário haitiano Toussaint Louverture, líder daquela que foi a única revolta de escravos bem-sucedida da história da humanidade, e acreditava que somente a violência conseguiria acabar com a escravidão nos EUA.

Assim, ele participou de ações contra escravagistas antes de tentar capturar o arsenal em Harpers Ferry —e de pelo menos um massacre: em 1856, acompanhando de seus apoiadores, Brown sequestrou e executou com um facão cinco colonos pró-escravidão no Kansas.

Quando um general do estado sulista do Missouri organizou uma coluna de 300 homens para capturar Brown pelos assassinatos, o religioso comandou seus 38 homens e utilizou táticas de guerrilha para matar ou incapacitar pelo menos 60 soldados, sofrendo apenas cinco baixas.

Entretanto, o fato mais impactante do ataque contra Harpers Ferry para as pessoas da época não foi a violência, diz Stephen Engle, historiador americano e biógrafo de Brown, da Universidade Atlântica da Flórida: o que realmente chocou todo o país foi o fato de que seu idealizador era um homem branco.

“Brown era uma pessoa à frente do seu tempo, completamente possuída pela ideia de liberdade e libertação e que acreditava firmemente ser o instrumento de Deus para abolir a escravidão nos EUA”, diz Engle. “E isso é o que era mais chocante: eis um homem branco disposto a morrer por pessoas negras. Um homem branco que toma o maior arsenal fora da capital e permanece lá, torcendo para que a notícia se espalhe de que ele está esperando com armas para os escravos.”

A revolta que Brown tentou instigar não se materializou: alguns escravizados próximos a Harpers Ferry chegaram a fugir para se juntar ao religioso, mas não no número necessário para ameaçar o governo do estado da Virgínia ou dos EUA, que rapidamente enviou tropas federais. Dez dos apoiadores de Brown morreram no tiroteio que se seguiu, outros sete foram executados mais tarde, e o restante conseguiu fugir. Do outro lado, os homens do religioso mataram sete pessoas, entre civis de Harpers Ferry e militares federais.

O objetivo de Brown —criar o estopim para uma revolta como a que deu início à Revolução Haitiana— demonstra tanto seu fanatismo (ele foi avisado repetidas vezes por aliados de que o plano era suicida) quanto sua admiração por aquele acontecimento histórico, diz Engle.

“Enquanto grande parte dos brancos americanos acompanharam a cobertura da imprensa sobre o Haiti na época com choque e medo, Brown ficou inspirado, porque a Revolução Haitiana foi vitoriosa. E ele combina isso com sua leitura do Novo Testamento para se convencer de que seu destino seria acabar com a escravidão.”

Brown não era o único evangélico da sua época a afirmar que escravidão e cristianismo eram incompatíveis. “Havia evangélicos que defendiam a escravidão, é claro, principalmente no sul. Mas muitos outros foram influenciados pela ideia de que a escravidão era um pecado, e que Jesus sempre esteve próximo dos marginalizados. E se todos são iguais no céu, por que não praticar essa igualdade na terra?”, explica Engle.

Nos dias que se seguiram ao ataque contra Harpers Ferry, o julgamento de Brown capturou a atenção dos americanos e da imprensa —essa foi uma das primeiras coberturas jornalísticas feitas por telégrafo do país. Os abolicionistas consideraram Brown um mártir e suas ações, heroicas; os escravagistas o chamaram de terrorista, uma acusação que ainda é feita hoje por alguns historiadores.

“Sim, ele usou a violência como um meio para um fim. Se você disser que isso é o que faz de alguém um terrorista, que seja. Mas a violência era parte da cultura americana do século 19”, diz Engle, que sustenta: não foi a violência que chocou os contemporâneos de Brown, e sim a cor da sua pele.

“As pessoas tinham raiva dele por sair da sua caixa racial e tinham raiva dele porque escolheu a violência. Mas ele já havia tentado a pregação e o convencimento e já havia decidido há muito tempo que não havia outro jeito [que não a violência] de acabar com a escravidão.”

A execução de Brown, por enforcamento, radicalizou ainda mais os polos opostos da sociedade americana que em breve se encontrariam no campo de batalha, e a história da Guerra Civil nunca deixou a cultura política americana.

“Toda geração americana retorna à Guerra Civil para ajudar a definir seu papel na sociedade em que vive. Aconteceu em 1920, em 1930, em 1950. Toda geração quer culpar alguém pelo que aconteceu, ou celebrar seus heróis”, diz Engle. “Hoje, acho que a maioria dos americanos compreende duas coisas sobre a Guerra Civil. Primeiro, que foi catastrófica [estima-se que entre 600 mil e 1,5 milhão de pessoas morreram no conflito]. Segundo, que democracia significa libertar as pessoas. Não escravizá-las.”

A escravidão nos EUA seria oficialmente abolida em 1865, após a Guerra Civil. Brown não viveu para ver o seu objetivo de vida se materializar. No seu último discurso, feito após o júri condená-lo à morte, ele disse:

“É injusto que eu sofra tal pena. Se eu tivesse interferido (…) em prol do rico, do poderoso, do inteligente, do assim chamado grandioso (…) todos nesse tribunal teriam julgado um ato digno de recompensa, em vez de punição.”

“Se for necessário que eu sacrifique minha vida para avançar os fins da Justiça e junte meu sangue com o sangue dos meus filhos e dos milhões nesse país de escravos cujos direitos são desrespeitados por leis malignas, cruéis e injustas, me rendo: que assim seja.”

VICTOR LACOMBE / Folhapress

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