BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Quatro casas de apostas esportivas online, as chamadas bets, já operam de forma legal em todo o Brasil por causa de um credenciamento feito pelo governo do estado do Rio de Janeiro, o que significa um drible em um entendimento judicial sobre o tema e na nova legislação do setor.
O formato definido pela Loterj (Loteria do Rio de Janeiro) tem causado desconforto em estados e no governo Lula (PT). O Ministério da Fazenda informou à reportagem que avalia medidas a serem adotadas, mas até agora nada fez de concreto.
A pasta chefiada por Fernando Haddad comanda o processo de regulamentação federal do mercado de bets. Trata-se de um esforço observado desde o ano passado em meio à tentativa do governo de obter receitas em um mercado bilionário.
No meio do ano passado, o governo editou uma medida provisória que depois foi convertida em lei, com as linhas gerais para o credenciamento de casas de apostas e regras de tributação.
A oferta de sites de apostas esportivas é liberada no Brasil desde 2018, após lei aprovada no governo Michel Temer (MDB). A partir disso, propagandas de bets passaram a dominar a TV aberta, sobretudo em jogos de futebol. As redes sociais foram inundadas de anúncios.
O governo de Jair Bolsonaro (PL) teve quatro anos para regulamentar o mercado, mas não o fez. Assim, o número de casas de apostas voltadas ao público brasileiro explodiu sem regras claras de atuação e fiscalização.
Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2020 deu impulso ao funcionamento das loterias estaduais, que também avançam no formato de apostas online. O Rio, que já tem loteria desde 1975, e Paraná são os mais avançados nesse tipo de credenciamento. Estados como Paraíba e Maranhão também estão adiantados.
Em 2020, o STF consolidou entendimento de que estados e municípios podem explorar loterias, a partir de duas ações que questionavam a exclusividade da União nesse serviço. As ações não tratavam exclusivamente de apostas online, mas de modalidades reguladas pelo governo federal –assim, a exploração por estados pode ocorrer desde que observados os limites colocados pela legislação federal, o que, desde 2018, recepciona apostas online.
Por tratar do direito de entes federados, a territorialidade das atividades é ressaltada no voto do relator no STF, ministro Gilmar Mendes, cujo posicionamento foi acompanhado pela corte. “A mim me parece acertado inferir que as legislações estaduais (ou municipais) que instituam loterias em seus territórios tão somente veiculam competência material que lhes foi franqueada pela Constituição”, diz o voto.
As cinco empresas credenciadas no Paraná só atuam no território do estado e mantêm travas de georreferenciamento para usuários. Mas isso não ocorre com as casas do Rio.
Hoje, estão credenciadas as empresas Apostou.com, Bestbet, Marjosports e Pixbet. Outras três estão com o credenciamento em curso: 1XBet, Lema e Laguna. O estado tem um prazo para novos credenciamentos, que se encerra ao fim deste mês.
Para se credenciar no Rio, as empresas pagam uma outorga de R$ 5 milhões, além de percentuais sobre as apostas. No processo federal, esse valor é de R$ 30 milhões.
“A Loterj mantém diálogo com todas as esferas do setor público e privado, além dos órgãos de controle, prezando um ambiente federativo e democrático”, disse, em nota, a loteria do Rio. O órgão é comandado pelo advogado Hazenclever Lopes Cançado, com histórico de trabalhos com políticos do PL, partido do governador carioca Claudio Castro e também do ex-presidente Bolsonaro.
No edital que credenciou as empresas, o Rio previu que as bets devem apenas informar que as operações de apostas são efetivadas no estado, sem qualquer trava de geolocalização para apostadores. A eliminação da restrição territorial foi feita por uma retificação do edital.
O edital foi lançado em abril de 2023 e a retificação ocorreu em 26 julho do ano passado. Um dia depois de o governo federal editar a medida provisória que depois foi convertida em lei.
O Rio ignorou questionamentos sobre esse e outros pontos, inclusive da Caixa Econômica Federal. “Essa retificação [que eliminou o princípio da territorialidade] implica em insegurança jurídica e afronta a legislação aplicável, que restringe a possibilidade de exploração das loterias estaduais ao território do Estado respectivo”, argumentou a Caixa, em pedido de impugnação.
Na negativa contra a medida, a Loterj argumentou que privilegiava o potencial de arrecadação. “O Estado, na figura da Loterj, ao retificar o Edital, observa o princípio constitucional da eficiência (art. 37), que, no caso, importa auferir a maior receita ao erário”, defendeu a Loterj na ocasião. O governo previu um faturamento anual de R$ 213 milhões com apostas esportivas online.
À reportagem, a Caixa afirmou que a exploração de jogos deve observar o território. “O banco está comprometido com o atendimento das normas regulatórias estabelecidas para o setor e com a garantia da legalidade e segurança das atividades de apostas realizadas no país”, diz a nota. A Caixa também manifestou ao Ministério da Fazenda interesse prévio na autorização para operar as apostas esportivas.
A posição do Rio é vista com potencial de desestabilizar o mercado em vias de regulamentação, causar judicialização e guerra fiscal, segundo pessoas que participam do processo dentro do governo e também ligadas a empresas que buscam se credenciar. Nos últimos meses, o Ministério da Fazenda recebeu representantes de nove estados que se queixavam da liberação que o Rio permitiu.
O presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, André Gelfi, diz que a situação gera apreensão entre as empresas, mas, após a aprovação da lei, isso tornou-se algo secundário no setor.
“A lei pacificou que a autonomia dos estados é estadual. Se tem alguma prática que não condiz com a lei, cada um tira as próprias conclusões. Não consigo detalhar as implicações, mas é algo que infringe a lei federal”.
“Se os estados e União não se compuserem, a situação vai acabar chegando no Supremo novamente”, diz o advogado Caio de Souza Loureiro, que atua nessa área no escritório Tozzini Freire Advogados.
Políticos do centrão têm pressionado o Ministério da Fazenda para ter algum controle dos processos de credenciamento de casas de apostas. A pressão liderada pelo presidente da Câmara Artur Lira (PL-AL) e o ministro dos Esportes, André Fufuca (PP-MA), foi crucial para a demissão de José Francisco Manssur da Fazenda.
Ele era cotado para assumir a nova secretaria de Apostas criada no ministério. A secretaria ainda não tem titular.
Lira foi procurado e, por meio de sua assessoria, informou desconhecer o assunto. O Ministério dos Esportes indicou que não houve qualquer pressão com relação a cargos e a regulamentação.
De acordo com o secretário-executivo da pasta, Antonio Vogel, o ministério deve trabalhar em conjunto com a Fazenda na autorização das empresas, não terá recursos de loterias que não pelo Orçamento e ficará responsável, sobretudo, por ações de integridade dos esportes para mitigar casos de manipulação de resultados.
A nova legislação trata dos jogos da chamada quota fixa, em que se sabe quanto é possível ganhar com a aposta (a partir de resultados de jogo de futebol, por exemplo). Durante a tramitação do projeto de lei na Câmara, os deputados incluíram, além das apostas esportivas, jogos online que contemplam cassinos e outros jogos de azar em ambiente virtual. Estima-se que até 80% da movimentação do setor venha desse tipo de atividade.
A regulamentação total deve ser finalizada ainda neste semestre. Durante esse período, as empresas com sede fora do país continuam a oferecer apostas online no Brasil.
PAULO SALDAÑA / Folhapress