‘Rir de Deus é um direito’, defende chefe do Charlie Hebdo 10 anos após atentado

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – “Vocês são de esquerda ou de direita?”, pergunta Gérard Biard, zombeteiro, assim que se senta com a Folha de S.Paulo para uma hora de entrevista. Esse é o espírito do Charlie Hebdo: zombar de tudo e de todos, tendo como único limite a lei.

Biard, redator-chefe do semanário há duas décadas, passou metade de seus 65 anos no Charlie, cuja versão atual ajudou a fundar, em 1992. O jornal acaba de lançar “Charlie Liberté”, livro que retraça a carreira das oito vítimas do atentado de 7 de janeiro de 2015. Biard escapou da morte porque estava em Londres, de férias, naquele dia.

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PERGUNTA – Como conciliar o trabalho de fazer um jornal com as medidas de segurança?

GÉRARD BIARD – Quando estamos na Redação, não há nada que faça lembrar o caminho percorrido. A equipe editorial -somos cerca de 50, incluindo a parte administrativa e os colaboradores- não trabalha junta o tempo todo. Quando estamos em trabalho presencial, tentamos fazer como sempre fizemos, tentando ser um pouco despreocupados. Afinal de contas, somos um jornal satírico. Temos a obrigação moral de tentar fazer rir, não necessariamente o tempo todo, mas pelo menos uma vez por edição.

P – Vocês ainda recebem ameaças?

GB – Hoje em dia, quem não recebe ameaças? Basta estar nas redes sociais ou olhar meio torto para alguém na rua e pronto. As ameaças se tornaram uma interação social quase banal. A única diferença, no nosso caso, é que sabemos que às vezes uma ameaça pode se tornar realidade. Portanto, tratamos algumas com mais seriedade do que outras. Mas confiamos que as pessoas encarregadas de avaliar o nível de ameaça o façam adequadamente.

P – Dez anos depois, o sr. acha que a intolerância aumentou ou diminuiu?

GB – Na Europa, os tribunais passaram a ter uma concepção muito mais ampla da liberdade de expressão. Mas, paradoxalmente, aumentou ainda mais a tensão na sociedade, por causa das redes sociais, que estão criando uma sociedade totalmente individualista. Nelas, as pessoas só falam sobre si mesmas, não sobre os outros.

Isso não é nada social; pelo contrário, é totalmente associal. Os algoritmos nos ajudam a encontrar só quem concorda conosco. Assim que você expressa uma opinião diferente, pode ser confrontado por alguém que diz: “Você não me respeita.” Mas viver em sociedade significa aprender a tolerar muitas coisas, ser um adulto. Caso contrário, você continua sendo uma criança em uma bolha.

P – E nesse mundo, qual é o papel do Charlie Hebdo, que sempre foi um jornal provocador?

GB – Não é um jornal provocador. É um jornal que usa a sátira e a caricatura. A sátira não foi criada para agradar ninguém. É uma ferramenta jornalística. As charges e caricaturas da imprensa são ferramentas jornalísticas. Também são usadas para mostrar um indivíduo, um fenômeno social ou um evento atual sob uma luz que não percebemos necessariamente no início. É outra maneira de ver as coisas. E de entender o mundo. É isso que Charlie faz.

P – Mesmo correndo o risco de ser mal interpretado?

GB – Historicamente, Charlie sempre foi incompreendido. Especialmente por aqueles que não querem entender. Ou que não o leem. Esse também é um dos principais problemas atuais: uma caricatura publicada na imprensa é retirada do contexto nas redes sociais e, às vezes, apropriada indevidamente.

Fundamos uma associação chamada “Desenhe, Crie, Liberdade”. Vamos às escolas de ensino médio explicar aos alunos o que é caricatura, o que é liberdade de expressão e o que são charges satíricas. Como cada vez menos jornais publicam charges, em todo o mundo, as pessoas estão cada vez menos acostumadas a entendê-las.

P – No Brasil, um cartunista [Millôr Fernandes] dizia: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

GB – Sim! Voilà! O papel da imprensa não é apenas vasculhar latas de lixo ou a carteira dos políticos, mas também mostrar como é a sociedade e explicar fatos sociais específicos. É disso que se trata o jornalismo.

P – É uma forma de perpetuar a memória das vítimas de 7 de janeiro de 2015?

GB – O primeiro objetivo do livro que lançamos é desmentir os dois terroristas que saíram das redações em 7 de janeiro de 2015 gritando: “Matamos Charlie Hebdo!”. Não, eles não mataram o Charlie Hebdo, nem mataram os cartunistas que alvejaram, nem as pessoas que morreram no ataque. Porque os desenhos deles são relevantes ainda hoje. As questões que eles abordam ainda são questões com as quais lidamos hoje.

Também não é coincidência o fato de o livro se chamar “Charlie Liberté”. Charlie permitiu que eles exercessem sua liberdade. E é isso que sempre tentamos fazer. Pessoalmente, não consigo me imaginar escrevendo para nenhum outro jornal. Porque é um jornal que me oferece uma liberdade que acho que não encontraria em outro lugar. Posso cobrir qualquer assunto, inclusive aqueles sobre os quais não sei nada, no tom que eu quiser.

P – Nunca ocorre a vocês o pensamento: “Não, isto aqui é demais?” Qual é o limite?

GB – Obedecer à mesma lei que os jornalistas. A lei de imprensa de 1881 define a expressão pública. Se você escreve em um jornal, fala na rua ou em uma assembleia, isso é expressão pública. Portanto, exercemos nossa liberdade dentro dos limites da lei, em uma democracia que nos permite muita liberdade. Depois disso, cada um tem seus próprios limites. Eu, por exemplo, não discuto a vida particular de uma figura pública, a menos que ela tenha decidido tornar pública sua vida particular. Mas se não for o caso, com quem ele dorme, quantas vezes por dia e em que posição, não me interessa.

P – Na França, a esquerda quer tirar do Código Penal o crime de “apologia do terrorismo”. Como o sr. vê essa questão?

GB – O problema é que a definição de apologia do terrorismo foi ampliada, por exemplo, para o ecoterrorismo, que pessoalmente não acho terrorismo. Mas parte da esquerda está pedindo isso com segundas intenções. Há uma antiga corrente antissemita não apenas na extrema direita, mas também na esquerda. Mas não cabe aos jornalistas nem aos ativistas definir o que é genocídio. Cabe aos juízes.

No momento, há uma suspeita de que Binyamin Netanyahu cometeu crimes de guerra. Por outro lado, não há dúvida de que o Hamas cometeu terrorismo em outubro de 2023. Massacrar civis pacíficos, que estavam entre os mais pacíficos e pró-palestinos da população israelense, e telefonar para a mãe dizendo “Mamãe, matei uns judeus hoje” não é um ato de resistência. É outra coisa. Então é assim que chamamos em Charlie. Não é preciso chamar Netanyahu de nazista para dizer que ele é um criminoso. É isso que estamos tentando fazer, o que é difícil de explicar hoje em dia quando se é um jornal de esquerda.

P – E Charlie Hebdo é de esquerda ou direita?

GB – [Surpreso] Ah, não! De esquerda. Na esquerda existem todas as colorações, digamos assim: do vermelho quase preto até o rosa bem pálido. Mas dentro disso há fundamentos inegociáveis, como o secularismo, que é historicamente um valor de esquerda. A ideia de secularismo vem do Iluminismo, que diz que Deus é uma ideia, e só. E o universalismo. Os direitos humanos se aplicam a toda a humanidade. Essa é a essência da esquerda. Dizer que precisamos de direitos universais, e que o dogma religioso não pode ser a base para leis civis, é ser de esquerda.

P – É um jornal ateu, também?

GB – Sim, é um jornal ateu. Nosso fundador, François Cavanna [1923-2014], dizia: “É o jornal da razão contra todos os dogmas, políticos ou religiosos”. É isso que a gente tenta fazer toda semana: privilegiar a razão. E a realidade. Não estamos procurando a verdade. Estamos tentando contar a realidade. Aliás, esse deveria ser o trabalho de todo jornalista.

P – Vocês criaram um concurso de caricaturas de Deus.

GB – É para mostrar que a ideia de Deus está arruinando a vida de milhões e milhões de pessoas em todo o mundo. Todos os dias, pessoas são oprimidas, torturadas, mortas e espancadas em nome da ideia de Deus. Portanto, temos o direito de rir dessa ideia. Porque você precisa desafiar esse poder. Não se trata de desafiar a fé. A fé é outra coisa. Fé é o que você tem dentro de si. Existem três coisas. Existe a fé. Existe a adoração, que é como você expressa essa fé. E depois existe a religião, que é o que organiza a fé e a adoração para controlar uma sociedade. Portanto, é política. E temos o direito de rir disso.

E isso faz parte da tradição do Charlie Hebdo. E temos o direito de rir disso na França. Muitas pessoas pensam que o crime de blasfêmia foi abolido na França em 1905, quando a lei da laicidade foi aprovada. Não, ele foi abolido em 1881 com a lei de imprensa, que é a lei da liberdade de expressão. Em outras palavras, Deus é uma ideia como qualquer outra. Você tem o direito de ter essa ideia, mas ela não é mais valiosa do que qualquer outra ideia. Nem mais, nem menos. Portanto, temos o direito de ridicularizá-la. Temos o direito de contestá-la. Você tem o direito de dizer que eu discordo.

P – Como evitar que a amargura tome conta de Charlie Hebdo, por conta da tragédia de dez anos atrás?

GB – Nossa primeira preocupação, quando criamos este jornal, era nos divertirmos, não nos entediarmos. E certamente não sermos amargos. Afinal de contas, somos um jornal satírico, um jornal de caricaturas. Tentamos dar risada e lembrar que eles [as vítimas do atentado de 2015] estavam fazendo isso para dar risadas. Caso contrário, não fariam. É isso.

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RAIO-X | GÉRARD BIARD, 65

Um dos fundadores da segunda versão de Charlie Hebdo, em 1992. É redator-chefe desde 2004. Sua biografia no site do semanário afirma que “não tem Facebook nem Twitter, então não adianta procurá-lo para mandá-lo foder a própria mãe” e que “não é agente do Mossad” (a agência de inteligência de Israel).

ANDRÉ FONTENELLE / Folhapress

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