NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) – É preciso não acreditar em paraquedas para saltar em Nova York com uma reinterpretação póstuma da obra brasileira mais conhecida do público americano –“O Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Na verdade, é preciso “chutzpah”, a palavra ídiche favorita dos nova-iorquinos que, de tão diversos e amontoados na metrópole, recorrem a ela para definir o encontro da ousadia com a imprudência.
“Volumens”, a primeira exposição individual do paulistano Rodolpho Parigi em Nova York, acaba de ser inaugurada na filial americana da galeria Nara Roesler, a mesma que apresentou o artista há 15 anos em São Paulo. A mostra fica aberta até o dia 8 de junho.
São cerca de 35 obras, a maioria delas em óleo sobre linho, criadas em ritmo febril, ao longo de um ano, para a exposição. O pintor vai à cidade no ano em que o movimento surrealista, de que é herdeiro, completa cem anos.
Duas obras-âncoras desta nova safra são a pintura de Tarsila reinerpretada, “Latex Volumen Abaporu”, instalada vizinha ao que Parigi chama de “o meu Abaporu”, uma sensual e francamente queer figura curvada que nada tem de reverente.
Parigi recebeu a reportagem na galeria, localizada no bairro de Chelsea, quando ainda discutia detalhes da instalação. A julgar pela coleção de tubos de tinta espalhados numa sala, parecia disposto a fazer retoques até a última hora.
Ele conta que se trancou sozinho no estúdio de São Paulo, sem assistente, porque queria estrear na cidade com uma obra completamente pessoal. “O gesto é meu. Não posso pedir gesto a outra pessoa. Para mim, a pintura voltou a ser uma figuração inventada,” afirma.
A exposição traz também a explosiva e monumental “La Danse”, de 2018, uma rave de formas e cores que já havia sido exibida na Art Basel de Miami, mas, como revela com alegria o autor, vai voltar de vez para o Brasil, adquirida “por uma instituição de São Paulo.”
Quem encontrar os quadros da mostra pela primeira vez pode perguntar se se trata mesmo de pintura a óleo. Parigi entende a confusão. “Uso a tinta a óleo de uma maneira tão ácida e chego a uma saturação da cor por causa da veladura,” diz, sobre a técnica de pintar em camadas. “Dá essa sensação de uma imagem 3D que pula da tela.”
Quando recebeu o convite para expor em Nova York, ele conta, começou a revisitar territórios que percorreu ao longo de uma carreira de diversidade expressiva que resulta, como escreve o curador Luis Pérez-Oramas, numa “obra profundamente séria na complexidade estrutural”, com “maestria de execução em suas múltiplas camadas de implicações históricas”.
Parigi cita Pablo Picasso com frequência, seja no desejo de pintar com a liberdade de uma criança, seja na intenção de ver sua arte como uma sucessão de fases, não de “habitar um lugar que vira uma marca”. “O que estou mostrando aqui é o meu DNA, os volumes que formaram a minha origem”, diz.
Ele quer fazer uma pintura que fala de pintura, com luz que é encontrada dentro da pintura: “Minha obra não imita fotografia. Ela tem que acontecer na pintura. É um risco, mas acredito que é de onde vem a grande pintura. Voltei a pintar da minha cabeça. Não é uma pintura de ideia, mas de tempo.”
A mostra inclui uma figura familiar para os que acompanham Parigi, o corpo coberto por um brilhante bodysuit de látex, que o curador Pérez-Oramas descreve como a imagem de uma limitação corporal prazerosa. Há uma série notável de aquarelas, “Black Volumen Bestiaire”, com técnica inovadora de desenhos de risco ultrarrápido, produzidas em maratonas que fizeram o artista sofrer de tendinite.
Parigi é o primeiro a citar todas as fontes onde foi beber. Apesar de cores e formas que reafirmam juventude, ele diz que volta “a um passado antigo para falar do futuro”. Ainda que se identifique como surrealista, ele acredita que é mais marcado pela qualidade pictórica de artistas como Tintoretto, além de Tarsila.
Cita imediatamente o renascentista Agnolo Bronzino como inspiração quando ficamos em frente à tela vertical que reúne mãos, formas contorcidas e é um exemplo da aspiração que ele tem a “uma pintura de processo”, incluindo até uma camada obtida com técnica de lixar a tinta a óleo.
Num tempo de choque com a facilidade da inteligência artificial, a devoção artesanal de Parigi faz a gente pensar na cena de um pintor anônimo de um estúdio florentino voltando do século 16 para pôr o infantilizado Mark Zuckerberg de castigo.
Desta vez, os nova-iorquinos ainda não vão conhecer o alter ego do artista, a Fancy Violence, uma “drag persona” que, segundo ele, seria mais compreendida nos Estados Unidos, onde artistas como Andy Warhol e Marcel Duchamp tiveram alter egos femininos amplamente conhecidos.
“A Fancy Violence é uma mistura de ciborgue, vampira e poltergeist”, ele diz, acrescentando que ela é uma peça de performance que emergiu da pintura, embora tenha que separar suas duas personas quando trabalha. “Não sou um crossdresser ou transgênero. Sou um gay e desconfio que ela ainda confunde um pouco no Brasil.”
Parigi diz que Fancy Violence vai voltar depois de uma ausência de cinco anos para uma performance num teatro paulista, na feira ArPa, marcada para junho.
A intensidade criativa provocada pelo convite para a mostra criou um pequeno dilema para o curador. Pérez-Oramas confessou que havia “excesso de destaques”, de modo que algumas obras vão ser instaladas numa sala de trabalho adjacente à galeria principal.
Não é preciso esperar para ouvir do próprio artista que ele conversa com seus fantasmas na solidão do ateliê. “Shakespeare, Bacon, Tarsila ou Dali me protegem quando pinto”, diz. Esta entrega ao inconsciente, um curto-circuito feliz, faz da mostra em Nova York um exemplo da Siena mental que habita a imaginação do pintor.
LÚCIA GUIMARÃES / Folhapress