RS vive risco de onda de violência e confronto de facções após enchentes

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A crise humanitária causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul trouxe as condições para uma piora na criminalidade que vá além dos saques a casas abandonadas, do furto de comida doada às vítimas e dos casos de violência dentro dos abrigos que servem de moradia provisória.

Segundo especialistas em segurança pública, o risco é de que a violência se agrave a longo prazo.

O alerta é feito com base em outros desastres climáticos, especialmente a passagem do furacão Katrina pelo Sul dos Estados Unidos, em 2005. Segundo especialistas, a criminalidade pode aumentar devido ao deslocamento de milhares de pessoas que ficaram sem casa, aos prejuízos incalculáveis à economia, ao aumento do desemprego e à interrupção do acesso à escola.

No Rio Grande do Sul, há ainda o agravante de que as facções criminosas no estado também tiveram prejuízos e foram deslocados pela chuva. Isso pode fazer com que eles busquem reposição das perdas financeiras com novos crimes, e que entrem em conflito com grupos rivais por causa da mudança de território.

“As próprias facções tiveram prejuízos nos seus depósitos de droga, na sua capacidade de mobilidade, e quando isso acontece elas vão buscar recuperar isso através de outras modalidades criminais”, diz o professor Rodrigo Azevedo, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica), que é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo ele, autoridades já apontaram que ao menos alguns dos saques a residências abandonadas durante as enchentes foram coordenados pela principal facção criminosa do estado, chamada de Os Manos. Segundo a Secretaria de Segurança Pública gaúcha, a polícia aumentou o patrulhamento em barcos após os primeiros relatos de furto, e o número de casos caiu em seguida.

O Rio Grande do Sul vivia uma tendência de queda na quantidade de mortes violentas e de crimes contra o patrimônio desde 2018. Houve uma quebra dessa tendência em 2022, quando houve aumento nos homicídios dolosos, mas esses crimes voltaram a cair no ano seguinte e no primeiro trimestre de 2024.

A piora da violência em 2022 estava ligada a disputa de facções, segundo especialistas. Os Manos —facção mais antiga do estado e que domina regiões da Grande Porto Alegre, Novo Hamburgo e São Leopoldo— e outros grupos criminosos menores, que atuam no interior gaúcho, estavam em conflito por território com uma facção chamada Bala na Cara.

Esse conflito havia diminuído em intensidade ao longo do último ano e meio, mas Azevedo não descarta que ele volte a se agravar por causa do deslocamento de centenas de milhares de pessoas devido às chuvas.

“Há uma possibilidade de que essas facções se reestruturem, tanto em termos de modalidades criminais quanto em termos de disputa de território”, diz Azevedo. “Podem se reabrir disputas em áreas que estavam relativamente acomodadas e, como sabemos, isso geralmente é acompanhado pelo aumento das taxas de homicídio.”

O que mais preocupa o especialista, no entanto, é o anúncio de que serão construídas “cidades temporárias” para desabrigados —que hoje são mais de 70 mil pessoas. O temor é que isso signifique a criação de novos bairros de periferia, sem acesso a transporte público e a serviços básicos, distantes dos locais que concentram empregos, onde a presença da polícia é rara.

Esse cenário, segundo especialista, é propício para o aumento da violência doméstica e abuso sexual contra grupos mais vulneráveis. A tendência de alta nos crimes praticados contra mulheres e a piora da saúde mental da população afetada por desastres climáticos é, inclusive, algo que já foi constatado por estudos científicos.

Há menos consenso científico sobre o efeito de tragédias climáticas no aumento de homicídios e crimes patrimoniais, embora existam estudos que apontem para essa relação. “Falta uma revisão sistemática mais robusta desses casos”, diz o sociólogo Tulio Kahn, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e especialista em dados estatísticos sobre segurança pública.

O que todos concordam, e pesquisas demonstram, é que desastres climáticos têm um impacto profundo no modo de vida da população. Crianças ficam meses sem aula e há impacto nas notas escolares quando elas finalmente se matriculam em colégios de cidades vizinhas. O consumo de drogas aumenta, assim como os problemas de saúde mental e a violência doméstica.

Se isso se refletirá necessariamente em aumento de homicídios, roubos e latrocínios, por exemplo, pode depender de cada contexto. “É provável que isso seja altamente influenciado pelas condições locais de criminalidade, anteriores ao desastre climático, e também pela resposta das autoridades”, diz Kahn.

É por isso que esse risco de aumento da criminalidade pode se transformar, inclusive, em cobrança de mais ações do poder público. “Sabemos que podem ser implementadas medidas que evitem que isso aconteça. Então nós temos que acompanhar, cobrar das autoridades que isso seja feito”, diz Azevedo.

TULIO KRUSE / Folhapress

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