SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No começo de julho, durante um comício, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, fez um pronunciamento visando especificamente àqueles que o acusam de autoritarismo.
“A democracia é frequentemente mal compreendida ou interpretada de forma diferente pelas pessoas”, disse. “Mas temos nossa própria compreensão dela com base na realidade particular dos ruandeses e no que precisa mudar em nossas vidas.”
Nesta segunda-feira (15), o país, que há 30 anos viveu um genocídio que matou entre 800 mil e 1 milhão de tutsis, vai às urnas para eleger os representantes da Presidência e do Parlamento e pôr à prova o significado de democracia em meio a acusações de que o governo vem perseguindo opositores políticos, censurando a imprensa e impedir o trabalho de ONGs.
Ex-líder da Frente Patriótica de Ruanda (RPF, na sigla em inglês), organização político-militar que derrubou os responsáveis pelo genocídio, Kagame comanda o país desde o massacre e deve se reeleger pela quarta vez. No último pleito, em 2017, ele venceu com 98,79% dos votos.
Kagame enfrenta Frank Habineza, líder do único partido de oposição tolerado, e Philippe Mpayimana, candidato independente os mesmos do pleito de sete anos atrás.
Mas figuras importantes no país, como Victoria Ingabire, Diane Rwigara e Bernard Ntaganda, foram barradas de concorrer por supostos erros em seus processos de candidatura ou por serem alvos de processos judiciais que, elas argumentam, têm motivação política.
Segundo a ONG Human Rights Watch (HRW), 14 membros do partido de Ingabire, que não é registrado junto às autoridades, estão presos. Alguns deles aguardam julgamento, enquanto outros foram condenados a penas incompatíveis com as normas internacionais de direitos humanos.
Ainda de acordo com a entidade, desde as últimas eleições, ao menos cinco membros da oposição e quatro críticos e jornalistas morreram ou desapareceram em circunstâncias suspeitas. A HRW também diz que um de seus pesquisadores teve sua entrada no país impedida ao tentar voar para Kigali em maio deste ano.
Kagame é oficialmente presidente de Ruanda desde os anos 2000. Mesmo antes, quando ocupou os cargos de vice-presidente e de ministro da Defesa, porém, já era quem de fato mandava no país.
Tanto tempo no poder se deve, em parte, por sua atuação durante o genocídio, diz David Kiwuwa, professor de relações internacionais da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, que pesquisa sistemas políticos africanos.
“Ele é visto praticamente como o salvador de uma Ruanda que estava soterrada em destruição e do desespero. Muitos atribuem a Kagame um papel fundamental no movimento de fim do genocídio”, afirma.
Apesar de ainda enfrentar alto nível de desigualdade, Ruanda conquistou sob o comando do líder níveis econômicos, políticos e sociais acima da média africana ou mesmo da média mundial. É o país com maior número mulheres no Parlamento no mundo; seu PIB (Produto Interno Bruto) cresce numa taxa estável de 8,5% ao ano; e sua posição no ranking mundial de corrupção da ONG Transparência Internacional é a melhor entre os países africanos.
Enquanto isso, seu RPF, que se tornou um partido após o fim do genocídio, detém até hoje a maior parte das cadeiras no Legislativo. Esse sistema de partido dominante, segundo Kiwuwa, é outro fator que colabora com a manutenção do poder de Kagame.
“Não há um único partido que sequer chegue perto de desafiar sua dominação, seu espaço político, sua capacidade financeira, suas estruturas e configurações institucionais, sua capacidade de mobilização, e assim por diante”, diz.
“Por último, poderíamos dizer que o regime em si não tolera críticas fortes em relação à sua liderança, especificamente o presidente, o que teve um efeito inibidor sobre qualquer crítica que ameaçasse Kagame de alguma forma”, completa o pesquisador.
Os bons índices econômicos tornaram Ruanda a menina dos olhos dos líderes ocidentais, que costumam ser generosos em doações de recursos para o país.
A boa relação com o Ocidente também levou o país a ser o escolhido para um acordo polêmico com o Reino Unido de acordo com o qual o país europeu enviaria imigrantes em situação irregular para aguardarem a resolução de seus processos na nação africana.
O plano, formulado ainda na gestão do Partido Conservador e amplamente criticado por organizações humanitárias, foi suspenso pelo novo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, do Partido Trabalhista, ao assumir.
Assuntos internacionais, entretanto, pouco ressoam nas eleições em Ruanda, segundo Kiwuwa, e os candidatos focam suas campanhas em questões como desenvolvimento econômico, emprego, custo de vida, educação, agricultura e união nacional.
“Os ruandeses ainda consideram a paz e a estabilidade como uma de suas principais preocupações, dada a história trágica que está enraizada na memória de todos”, afirma.
MANUELA FERRARO / Folhapress