SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Retratado no sucesso de bilheteria “Ainda Estou Aqui”, Rubens Paiva teve uma atuação como deputado federal mais focada nos bastidores, mas fez um discurso histórico na madrugada em que se desenrolou o golpe de 1964.
A história de sua vida e morte, em 1971, é símbolo de necessária proteção à democracia e mostra como a arbitrariedade da ditadura militar impactou pessoas que não se envolveram diretamente com a luta armada, dizem historiadores ouvidos pela Folha.
Da ala mais à esquerda do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), Paiva era reformista e nacionalista, na interpretação de Jason Tércio, escritor e biógrafo do político.
Em sua fala no 1º de abril de 1964, conclamou a população brasileira a se colocar a favor da legalidade do governo do então presidente João Goulart e condenou o assanhamento golpista.
“Meus patrícios, me dirijo especialmente a todos os trabalhadores, a todos os estudantes e a todo o povo de São Paulo tão infelicitado por este governo fascista e golpista que neste momento vem traindo seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação”, começou.
Ele defendeu as reformas de base e pediu que a população se manifestasse a favor de Goulart de maneira ordeira e pacífica.
Paiva foi torturado e morto pela ditadura militar em 1971, depois de ter o cargo de deputado federal cassado assim que ocorreu o golpe. O reconhecimento do óbito por parte do governo brasileiro veio apenas 25 anos depois, em 1996, na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
Nascido em 1929 em Santos, no litoral de São Paulo, formou-se engenheiro e teve atuação no movimento estudantil. Foi eleito deputado em 1962 e se exilou no exterior em 1964, mas depois de poucos meses voltou para o Brasil. Passou a viver com a família no Rio de Janeiro, onde foi sequestrado pelos militares.
O regime o ligou ao recebimento de correspondências vindas de exilados. “Viram nele um intermediário e superestimaram seu papel, em um momento marcado pelo sequestro do embaixador suíço [Giovanni Bucher, raptado por integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária]”, afirma Tércio.
A trajetória do deputado voltou à tona com o sucesso de bilheteria de “Ainda Estou Aqui”, filme que narra seu desaparecimento e morte. A obra, que busca representar o Brasil na disputa pelo Oscar de 2025, aborda também a luta da esposa de Rubens, Eunice Paiva, para que o Estado reconhecesse o óbito do marido. Foi baseada em livro homônimo de um dos filhos do político, Marcelo Rubens Paiva.
Para Tércio e historiadores ouvidos pela Folha, a divulgação do filme de Walter Salles ocorre em momento oportuno, uma vez que o Brasil retoma a discussão sobre ataques à democracia, desta vez em contexto protagonizado por militares próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
No dia 21 de novembro, a Polícia Federal encerrou o inquérito sobre uma tentativa de golpe em 2022 e indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas, a maior parte delas militares. Segundo a PF, o plano envolvia o assassinato do então presidente eleito, Lula (PT), de seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.
Segundo Rodrigo Patto Sá Motta, professor de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a trajetória de Paiva serve como chance de repensar o risco de vivências antidemocráticas.
Ele afirma que o contexto ditatorial da morte do deputado precisa ser relembrado e rechaçado. Diz também que o assassinato de Paiva joga por terra a argumentação de que apenas aqueles que participaram da luta armada foram impactados.
“Ele não era um comunista, talvez nem socialista fosse. Defendia as riquezas nacionais, bandeira muito cara na época”, afirma Jason Tércio, que corrobora a interpretação do historiador.
Apesar da fala simbólica no 1º de abril, Paiva era um político mais dos bastidores, afirma Tércio. Segundo a Câmara dos Deputados, o parlamentar participou de sete comissões permanentes. Foi titular em duas delas, uma sobre relações exteriores e outra de transportes, comunicações e obras públicas.
Também foi titular em duas comissões parlamentares de inquérito e vice-presidente na CPI que apurou a atuação política do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e do Ipes (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais).
A participação mais marcante foi nesta última, afirma Matheus Augusto Sampaio, mestre em história pela Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto). Na época, o parlamentar se envolveu de forma atuante e questionadora na comissão, segundo consta em sua biografia.
“Houve a CPI porque veio à tona que esses institutos financiaram várias campanhas para as eleições de 1962. Eles tinham como função desestabilizar o governo Goulart e, depois, passaram a apoiar abertamente o que se tornou conhecido como golpe de 1964”, diz Sampaio.
De acordo com Samantha Quadrat, professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), o ano em que Paiva foi torturado e morto marca a escalada da violência no Rio de Janeiro, com alta concentração de mortos e desaparecidos.
O caso do político trouxe impacto para a repressão, que começou a “estabelecer outros métodos” e pensar na necessidade de ter espaços mais privativos para as torturas e mortes, diz Quadrat.
“Isso foi consolidado tanto na ‘Casa da Morte’ [centro clandestino em Petrópolis, no Rio de Janeiro], como na Usina de Cambahyba, onde os corpos de alguns mortos e desaparecidos brasileiros teriam sido queimados”, afirma a professora.
Depois de sequestrado em casa, torturado e morto em 1971, Rubens foi considerado desaparecido por anos. Ele teve a morte confirmada com os trabalhos da CNV (Comissão Nacional da Verdade), finalizada em 2014.
Ainda há processos abertos sobre o caso. Na quinta-feira (21), o procurador-geral da República, Paulo Gonet, manifestou-se pelo encerramento de um deles, mas disse que a discussão deve seguir em outra ação, mais ampla e que questiona a anistia dos acusados do assassinato do ex-deputado.
ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress