SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O governo da Rússia deixou formalmente, no primeiro minuto desta terça-feira (7), o Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa. O movimento havia sido anunciado, mas traz um simbolismo histórico importante: é o enterro formal do arcabouço de segurança desenhado no final da Guerra Fria.
O tratado, assinado quando ainda existia uma União Soviética, em 1990, entrou em vigor em 1992, quando o império comunista já havia se esfacelado havia um ano. Ele visava conter o brutal acúmulo de material bélico não-nuclear na Europa o campo de batalha presumido se a guerra entre Moscou e Washington se tornasse quente.
Segundo o texto, as oito repúblicas soviéticas a oeste dos montes Urais e os então 16 membros da aliança ocidental Otan se comprometiam a limitar o número de equipamento militar em solo europeu: no máximo, por exemplo, 20 mil tanques pesados, 20 mil peças de artilharia, 6.800 aviões de combate de cada lado.
O resultado foi uma das maiores destruições de armas da história, com 52 mil peças desabilitadas. O resultado nunca agradou os russos, dado que a superioridade convencional soviética foi um dos pilares de sua política externa durante toda a Guerra Fria.
Em 2007, o já presidente Vladimir Putin suspendeu a participação plena no acordo, alegando que os EUA e seus aliados não haviam ratificado sua versão revisada em 1999. No ano seguinte, estava em guerra contra a pequena e agressiva Geórgia, acima de tudo para evitar a entrada do país na Otan.
Em 2014, a anexação da Crimeia sem disparos consolidou uma nova ordem europeia em que a força falava mais alto. No ano seguinte, Putin parou de cumprir as medidas do CFE, sigla pela qual o tratado é conhecido em inglês, mas foi só em maio do ano passado, já tendo invadido a Ucrânia, que anunciou que deixaria de vez o acordo.
Por óbvio, era um diploma caduco. “O CFE foi concluído no fim da Guerra Fria, quando a formação de uma nova arquitetura global e de uma segurança europeia baseadas em cooperação parecia possível, e tentativas apropriadas foram feitas”, disse nota do Ministério das Relações Exteriores da Rússia.
De fato, os EUA não foram exatamente magnânimos na vitória contra os soviéticos. A Otan começou a se expandir e absorveu até ex-repúblicas soviéticas, os Estados Bálticos (Estônia, Lituânia e Letônia), em 2004. Com a adesão finlandesa, essa uma cortesia da agressão de Putin contra Kiev, tem hoje 31 membros, praticamente o dobro do que em 1990.
Em Moscou, isso sempre foi visto como traição, como deixou claro o famoso discurso de Putin sobre segurança europeia em 2007, em Munique.
É um jogo de empurra. Os EUA, por exemplo, condicionaram a ratificação da revisão do CFE em 1999 à saída de forças russas da Geórgia e da Moldova, onde estão até hoje. Moscou alegou que não pode deixar áreas de maioria russa desprotegidas, já que o encolhimento das fronteiras soviéticas acabou isolando-as a famosa “maior catástrofe geopolítica do século 20” citada por Putin, que críticos dizem ser só nostalgia imperial/soviética.
“Os aliados condenam a decisão russa e sua guerra de agressão contra a Ucrânia, que é contrária aos objetivos do acordo. Assim, como consequência, os Estados aliados pretendem suspender a operação do CFE por quanto tempo for necessário”, afirmou, em nota, a Otan.
Do ponto de vista prático, a Rússia já não tinha as outras sete repúblicas soviéticas e seis integrantes do Pacto de Varsóvia, a Otan comunista, para lhe dar o antigo volume de armas na Europa. Em termos de tanques, por exemplo, seu arsenal de quase 3.500 modelos ativos foi reduzido à quase metade, nas contas do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, devido à guerra.
Assim, Moscou recorre às suas enormes reservas de material antigo, que se vê diariamente na Ucrânia. A soma das forças europeias também não supera os limites: cerca de 7.000 tanques, sem contar o arsenal de 5.500 dos Estados Unidos.
Com a militarização da economia russa e consequente aumento de produção bélica e o forte rearmamento de países da Otan como a Polônia, é previsível que o fim do CFE seja apenas a conclusão lógica do atual momento mundial.
Ele se soma ao desmantelamento da arquitetura de segurança nuclear iniciado por Donald Trump ao sair de 2 dos 3 tratados finais que tentavam evitar uma guerra atômica. Novamente, os EUA diziam apenas se adequar à realidade, acusando os russos de secretamente não respeitarem os termos colocados.
Os passos mais recentes foram de Putin, com a suspensão da participação russa do último tratado em vigor, o Novo Start, no começo deste ano. Além disso, como Washington nunca ratificou o acordo que bania todo tipo de teste nuclear, Moscou achou por bem deixar esse também na semana passada.
No caso do Novo Start, contudo, tanto EUA como Rússia seguem ainda suas linhas principais de contenção de arsenais estratégicos, aqueles que visam destruir o adversário completamente. Mas, na segunda (6), o chanceler russo, Serguei Lavrov, disse que não permitiria a volta de inspeções mútuas de instalações nucleares enquanto Washington seguir fornecendo mísseis com maior alcance à Ucrânia.
Os modelos ATACMS têm feito estragos consideráveis a bases russas nas áreas ocupadas do vizinho, assim como na mesma segunda surgiram imagens de um navio de Moscou bastante danificado por três mísseis de cruzeiro franceses. A contraofensiva de Kiev não levou a lugar algum, mas a troca de fogo segue com baixas de lado a lado.
A atual guerra em Israel acentua a divisão do mundo em blocos, com Moscou opondo-se ao apoio militar ostensivo dos EUA a Tel Aviv. No tabuleiro global, Putin é o principal aliado da potência que desafia Washington de fato, a China de Xi Jinping, numa disputa que vai de ilhotas no Pacífico à inteligência artificial e superchips.
A Guerra Fria pode estar enterrada, apesar de a estátua do pai da KGB estar de volta a Moscou, mas a Guerra Fria 2.0 segue vivíssima.
IGOR GIELOW / Folhapress