Sem demarcação, mundurukus no entorno de floresta nacional sofrem com garimpo e desmatamento ilegal

TRAIRÃO, PA, E TERRA INDÍGENA SAWRÉ MAYBU, PA (FOLHAPRESS) – Com um facão na mão, Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Muybu, vai desbastando a mata densa que cresceu sobre o caminho aberto há pouco mais de um ano. O trabalho ajuda a manter a trilha da floresta onde fica o limite da terra indígena de mesmo nome, da etnia munduruku.

O limite, porém, só é reconhecido -e, portanto, respeitado- pelos próprios indígenas.

Com uma área de 178.173 hectares entre os municípios de Trairão e Itaituba, no Pará, a terra indígena Sawré Maybu quer ampliar o território pertencente aos mundurukus. Atualmente, eles ocupam a Terra Indígena (TI) Munduruku em uma área de 2,4 milhões de hectares no Alto Tapajós, próximo ao município de Jacareacanga, sudoeste do estado.

O processo de reconhecimento da terra se arrasta desde 2007, quando foi instituído um grupo de trabalho na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para avaliar a demarcação do território. Em abril de 2016, o órgão indigenista reconheceu a localidade e iniciou os estudos para delimitação da área. Contudo, desde então não houve a homologação da terra, o que deixa os indígenas à mercê do garimpo e do desmatamento ilegal, que crescem na região.

“Esse arco da [aldeia] Sawré Muybu está centrado em muitos projetos que [o governo] tem a intenção de construir no rio Tapajós, de hidrelétricas a hidrovias, portos e também estradas para o transporte de madeira e minério. Sem a demarcação, acabam vindo muitos invasores para derrubar a floresta e garimpar dentro da terra indígena”, afirma Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena à frente da Associação Indígena Pariri.

Apesar de terem procurado o governo diversas vezes para a homologação, Alessandra e os demais mundurukus dizem que o processo está parado. “Enquanto isso, o território segue sendo invadido por garimpeiros, por madeireiros, grileiros, e aí a nossa terra cada vez mais vai ficando pequena.”

Em novembro do último ano, o Ministério Público Federal fez uma recomendação ao governo Lula (PT) para seguir com a demarcação, mas a ação não teve resposta há mais de oito meses.

Procurada, a Funai não respondeu até a publicação deste texto. O Ministério da Justiça e Segurança Pública disse que houve o retorno ao órgão da função de reconhecimento e demarcação no ano passado, e que a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu passa por processo de reanálise ainda não concluída. Já o Ministério dos Povos Indígenas afirma que os processos demarcatórios precisam avançar para que os direitos dos Munduruku sejam assegurados.

“A gente sabe que muitas vezes o governo quer demarcar, mas há um grupo no Congresso que é contra a demarcação de terras indígenas, o que impede a aceleração do processo”, diz Jairo Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Aboy, que fica dentro do território.

Com a chegada dos invasores, além da retirada de madeira em área de preservação, os animais, fonte de alimento pela caça dos mundurukus, ficam cada vez mais distantes. Já no garimpo, o uso de mercúrio tem contaminado as águas, com efeitos devastadores na saúde e no meio ambiente.

Frente à ação insuficiente do governo, os próprios mundurukus têm atuado na fiscalização do território.

“Tiveram algumas operações de desintrusão do garimpo, mas isso não encerra o problema. Eles continuam entrando, inclusive os madeireiros, que não podiam estar ali porque é uma Flona. Não estamos vendo o órgão tomar medidas”, diz o cacique. A Flona é a Floresta Nacional Itaituba II, um tipo de Unidade de Conservação, sob a tutela do ICMBio (Instituto Chico Mendes da Biodiversidade).

As placas, colocadas pelos próprios indígenas, informam que a entrada no território de pessoas não autorizadas é proibida, mesmo sem a homologação oficial da área.

No cotidiano, porém, madeireiros e garimpeiros entram e saem diariamente, sem punição. “Às vezes, conversamos com eles, dizemos que não está certo invadirem, e eles saem. Mas tem vezes que chega ao conflito. Já recebi ameaças de morte”, conta o cacique Juarez, de Sawré Muybu.

Procurado, o ICMBio afirma que “há um esforço institucional de combate aos ilícitos ambientais” na região da terra indígena, com ações de incursões no final de junho para fiscalização dos invasores.

“Devido aos impactos causados na população indígena próxima, inclusive afetando a atividade de pesca (…), foi inutilizada uma draga no leito do rio Tapajós, sendo constatada a utilização de mercúrio com licença municipal de operação, mas que estava distante 22 km da poligonal onde deveria exercer suas atividades”, informa, em nota.

O órgão também disse que há uma orientação para que os indígenas “não realizem a fiscalização de forma autônoma devido aos riscos associados a esta exposição” e que, de 2021 a 2023, houve uma queda acentuada no desmatamento na Flona Itaituba I, de 145 ha para 23 ha (-16%) e Flona Itaituba II (de 1.625 ha para 186 ha, ou -88%).

Segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), não há nenhum processo aberto junto ao órgão de licenciamento para exploração mineral na Flona de Itaituba.

Já o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática afirma que, no ano passado, uma operação remota para fiscalizar as autorizações e licenças de Permissões de Lavras Garimpeiras em todo o estado resultaram em 64 autos de infração e 26 termos de embargo. “Nos municípios próximos à TI Munduruku, foram aplicados 33 autos de infração e 13 termos de embargo”, diz o instituto.

Em nota, o governo do estado do Pará disse fiscalizar e combater o garimpo ilegal, e que como órgão responsável por emitir licenças prévia, de instalação e de operação em empreendimentos localizados em área de administração estadual, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade realiza estudos técnicos para subsidiar a análise de processos de licenciamento ambiental.

O garimpo que avança nas terras indígenas do país viveu um período de explosão durante os anos do governo Bolsonaro (PL), quando medidas de fiscalização foram cortadas e os garimpeiros foram favorecidos. Segundo o monitoramento do MapBiomas, com dados até 2023, o garimpo ilegal nas terras indígenas Munduruku, Yanomami e Kayapós já ocupa mais de 26 mil hectares (áreas somadas). Só em 2023, foram 1.410 ha, o equivalente a quatro campos de futebol por dia.

“O prejuízo que o garimpo causa não é só ambiental. Ele também leva para dentro de territórios tradicionais um prejuízo social, porque muda a dinâmica das populações, traz problemas de criminalidade, de violência sexual”, reflete Jorge Dantas, porta-voz do Greenpeace Brasil para povos indígenas.

“O principal desafio, no Brasil, é buscar meios de fiscalizar os projetos de licenciamento ambiental, que é hoje nosso principal gargalo”, afirma Larissa Rodrigues, diretora de pesquisa do Instituto Escolhas, que divulgou um estudo sobre o uso do mercúrio no país de 2018 a 2022 para garimpo.

Ela cita a falta de capacidade técnica para analisar e monitorar os pedidos de licenciamento na região munduruku como um gargalo. “É claro que estamos melhor, em 2024, em relação a 2023, porque o assunto voltou a ser discutido, há interesse em frear. Mas está longe de ser resolvido”, lembra.

Mesmo com o interesse do governo atual de fiscalizar o garimpo e o desmatamento, os indígenas lamentam que há poucas ações concretas, principalmente para avançar com a homologação do território. O receio é que seja tarde demais.

“Nós fizemos uma aliança entre os três povos, mundurukus, yanomamis e kayapós para retirar os invasores e trazer de volta um equilíbrio para proteger a natureza”, diz Jairo.

O modelo adotado de mineração e comércio ilegal de madeira só escancara ainda mais a pobreza, beneficiando alguns poucos, ao contrário dos povos tradicionais, que vivem em equilíbrio, explica Caetano Scannavino, coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria, que atua na região.

“[Vemos] a insistência em um modelo de ocupação que deu errado, baseado no desmatamento e na degradação para garimpo de ouro. Se fosse um modelo bom de progresso, Jacareacanga, que explora há 70 anos o garimpo, seria uma cidade 100% asfaltada, com hospital de ponta e saneamento de qualidade, o que não ocorre”, ressalta.

A urgência para a recuperação das áreas degradadas tem também como objetivo amenizar os efeitos da mudança climática na região, que já apresenta secas mais prolongadas.

“A gente vê que o clima, hoje, está diferente. E precisamos cuidar desse clima, porque ele serve para todo mundo. Minha esperança é ver os meus netos cuidando disso aqui também, porque é parte do futuro, do que queremos da floresta”, afirma o cacique Juarez.

A reportagem foi realizada com o apoio da Earth Journalism Network.

ANA BOTTALLO E DANILO VERPA / Folhapress

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