SÃO SEBASTIÃO, SP (FOLHAPRESS) – Assim que aprendeu a nadar, quando tinha 8 anos, o pescador Luiz Carlos Passos Filho, 51, começou a acompanhar o pai até o cerco, uma rede montada no mar da praia de Boiçucanga, em São Sebastião (SP), para capturar cardumes. Um dia, ele conta, foi obrigado a nadar de volta porque o barco ficou lotado de peixes e não sobrou lugar.
Seus dois filhos, no entanto, não quiseram aprender o ofício, passado a ele por seu pai, que aprendeu a pescar com seu avô, que por sua vez foi ensinado por seu bisavô, Hilarião Crisólogo de Matos, nome de rua no balneário.
“Minha filha quer estudar confeitaria, e meu filho quer competir no skimboard”, diz. “Eu tentei levá-los para pescar quando eram crianças, mas foi proibido. Só pode entrar no barco quando fizer 14 anos e tirar o documento [licença de aprendiz de pesca]. Na minha família, a pesca vai parar em mim.”
A situação se repete em outras famílias. Nenhum dos dez filhos do pescador Benedito Serafim dos Santos, 73, quis seguir os passos do pai. “Viraram funcionário público, DJ, dono de restaurante. Não viraram pescadores porque enxergaram a dificuldade e cada um foi para o seu lado. Sou da última geração de pesca artesanal aqui em Boiçucanga”, diz.
Ele conta que, há cerca de seis meses, deixou a rotina de sair de madrugada para o mar em busca de peixes para conduzir um barco de turismo que serve refeições durante passeios pela orla de São Sebastião. “As leis que colocaram contra o pescador não deixam mais espaço para pescar”, diz.
Filho, sobrinho e neto de pescadores, Eric Teixeira de Oliveira, 41, começou no ofício aos 7 anos, mas, assim como os companheiros, diz acreditar ser o último na família a seguir a profissão. “Meus três filhos moram em São Paulo com a mãe. Eu até tentei ficar lá com eles, mas não consegui. Não vivo sem o mar.”
As dificuldades citadas pelos remanescentes da pesca artesanal em Boiçucanga confluem para as recorrentes mudanças das leis ambientais que, segundo eles, restringem o ofício cada vez mais. A pesca do cação, por exemplo, é proibida –caso o pescador seja flagrado com a espécie no barco, é multado em R$ 5.000 por unidade. “É justo vir na rede e ter que jogar fora?”, questiona Santos. “Por isso eu parei de pescar.”
A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca também proíbe o uso da rede de espera, que fica no fundo do mar e é capaz de capturar peixes com maior valor de venda, como tainha, sororoca e anchova.
“Só podemos usar rede que boia para não pegar tartaruga e pinguim”, explica Passos Filho. “Os turistas de stand-up viam alguma tartaruga presa, tiravam fotos e cortavam a rede, que custa R$ 50 mil. Se levarem embora, acabou”, diz.
Foi esse o motivo que fez Celso Sousa Filho, 57, o Xixico, desistir de seu barco usado para carregar a rede que protege o cerco. “Antes de ser autuado, eu pulei do barco e vendi aos meus funcionários. Parei de pescar porque uma hora vou ser preso, e isso para mim é inaceitável. Fico triste porque eu quero pescar, mas dentro da lei”, diz ele, que tinha uma peixaria em Boiçucanga e vendia o pescado a restaurantes e turistas. “O problema da pesca hoje é a burocracia. As leis ambientais são inviáveis para os pescadores artesanais, dizimam toda uma cultura. Algo está errado.”
O filho de Xixico também não irá perpetuar o ofício na família –ele se tornou engenheiro de aquicultura.
Os pescadores afirmam que o ambiente regulatório permite que apenas grandes empresas pesqueiras tenham condições de arcar com todas as exigências, que incluem expedição de documentos para pescar cada espécie. Procurado, o Ministério da Pesca e Aquicultura, do governo Lula (PT), não respondeu.
No fim de janeiro teve início o período de defeso do camarão, quando fica proibido pescar o crustáceo para permitir sua reprodução. Entre os dez pescadores da praia de Boiçucanga, cinco recebem o seguro defeso, benefício que prevê o pagamento de um salário mínimo até o fim de abril, quando termina o período de restrição.
A lei federal que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura foi aprovada em junho de 2009 e regulamentou a pesca artesanal e industrial no âmbito da preservação ambiental.
Dotada de um canal que deságua no mar, a praia de Boiçucanga foi um polo importante de pesca artesanal no litoral norte paulista. A associação local de pescadores tinha aproximadamente cem barcos cadastrados há cerca de 50 anos. Atualmente, não passam de dez. Dos 220 associados, metade é de turistas e frequentadores da praia que pagam a mensalidade de R$ 30 de forma voluntária.
O dinheiro será destinado neste ano à obra de dragagem do canal, que sofre processo de assoreamento que dificulta a navegabilidade. Em um ano, a profundidade de cerca de 3 metros chegou a 70 centímetros. Para remover os sedimentos, é preciso contratar uma máquina que consome 100 litros de diesel ao custo de R$ 400 por dia. São necessários 30 dias de serviço.
O pescador Passos Filho, diretor da associação, diz que tem se reunido com a Prefeitura de São Sebastião em busca de apoio. A gestão do prefeito Felipe Augusto (PSDB) foi procurada para falar sobre as obras, mas não respondeu à reportagem.
O canal ganhou ligação com o mar em 2001, quando o banco de areia que servia de campo de futebol foi dragado pelos próprios pescadores. “Só tirava o barco do canal quando a maré enchia, tinha que acordar às 3h da manhã, na maré alta. A vida melhorou 100%”, diz Passos Filho.
Logo após a tragédia que deixou 64 mortos e 200 hectares devastados em São Sebastião, há um ano, os mesmos pescadores se juntaram para tirar galhos de árvores e sedimentos que rolaram morro abaixo e foram parar no canal. Eles contam que usaram serras e os próprios barcos para limpar a água, que ficou barrenta por vários dias.
Depois de ganhar ligação com o mar, o canal passou a contar com marinas, que abrigam lanchas de turismo e bancavam o desassoreamento anual. Neste ano, porém, o acordo não foi renovado, e a associação de pescadores terá que arcar com os custos. “Nós fizemos a obra para nós, pescadores, e não tem nenhum marinheiro daqui trabalhando nas marinas, só gente de fora. Nossa briga é essa”, diz Passos Filho.
Para Xixico, a decadência da pesca artesanal afeta, inclusive, o hábito alimentar da população que vive ali. “Cresci comendo peixe salgado no café da manhã. Hoje, as novas gerações nem sabem o gosto disso”, diz. “A pessoa paga caro por uma peça de picanha, cheia de hormônios, e reclama do preço do peixe.”
MARIANA ZYLBERKAN E ADRIANO VIZONI / Folhapress