KAZAN, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Sem a presença física do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que teve de cancelar a viagem devido a um acidente doméstico, os países que compõem o Brics se reúnem em Kazan (Rússia) estreando seu novo formato com forte tom político e de desafio ao que Vladimir Putin e Xi Jinping percebem como hegemonia do Ocidente liderado pelos Estados Unidos.
A ausência de Lula, que deverá participar de reuniões por vídeo, acabou tirando cascas de banana diplomáticas em que o brasileiro costuma gostosamente escorregar, dada a pouca dissonância discursiva entre o que ele defende e o que pensam Moscou e Pequim.
O acrônimo Brics surgiu em 2006, quando Brasil, Rússia, Índia e China pareciam compartilhar algo mais que o status do que se chamava de economias emergentes. Em 2010, o S de South Africa (África do Sul, em inglês) foi acrescido ao grupo.
De lá para cá, cada um foi para um caminho, e agora o Brics faz sua primeira cúpula após uma expansão inédita, comandada pela China com o apoio do Kremlin, que veem no bloco um instrumento a mais na sua Guerra Fria 2.0 contra o Ocidente liderado pelos EUA.
Estarão à mesa os líderes dos Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Egito e Irã –este último, país no centro da aguda crise da guerra no Oriente Médio, prestes a receber um ataque retaliatório de Israel e sob ameaças abertas dos americanos.
A expansão inclui também a Arábia Saudita, mas seu governo não decidiu ainda pela adesão. A Argentina, igualmente convidada na cúpula de 2023, na África do Sul, declinou após a eleição de Javier Milei à Presidência.
A presença dos iranianos e seus parceiros de Moscou e de Pequim dão um holofote antiamericano óbvio à reunião, algo que diplomatas do Brasil, Índia e África do Sul têm tentado evitar.
Não que Lula se importe: antes da queda no Alvorada, o presidente já tinha encontros bilaterais confirmados para terça (22) e quarta (23) com Putin, Xi e Masoud Pezeshkian, o novo presidente da teocracia de Teerã.
O encontro foi costurado mesmo sob o risco de críticas, dado que historicamente o Brasil pende para o lado muçulmano nas disputas do Oriente Médio. Foi sob Lula que o país fracassou em montar um acordo para limitar as ambições nucleares do Irã, em 2009.
Em Israel, a posição pró-palestinos levou à virtual ruptura de Lula com o Estado judeu, emulando seu relacionamento com Kiev. O presidente é quase persona non grata na Ucrânia, devido a suas declarações equivalendo Putin a Volodimir Zelenski.
No caso da guerra europeia, o governo brasileiro aliou-se ao chinês na proposta de uma cúpula envolvendo os adversários. A iniciativa de Pequim ia bem, mas a invasão ucraniana de um pedaço do sul russo, em Kursk, e os avanços de Putin no leste do vizinho jogaram areia no mecanismo.
O tema poderá surgir em conversas bilaterais durante a cúpula, que vai de terça (22) a quinta (24), mas é praticamente certo que não estará nas mesas abertas ou comunicados oficiais.
Já o conflito no Oriente Médio será debatido, algo de resto tradicional, como disse o principal negociador brasileiro para o Brics, o embaixador Eduardo Saboia. Como todos os titulares são inclinados à causa palestina, críticas a Israel e complacência com o Hamas, Hezbollah e afins são previsíveis.
Resta saber como será o destaque de Pezeshkian, logo depois do assassinato do líder do Hamas, Yahya Sinwar, e com a ameaça de uma guerra ampliada na região.
No Itamaraty, a palavra de ordem é que o Brics não pode se tornar num grupo político, muito menos teleguiado pelo seu mais poderoso membro, a China de Xi. No ano passado, não conseguiu impedir a expansão ao gosto chinês, e neste ano a luta vai girar entre os países que serão convidados a ser parceiros do Brics.
Até setembro, 22 países tinham demonstrado interesse em ingressar no Brics. Aqui, a batata quente para o Brasil é a vontade sino-russa de que Venezuela e Nicarágua, ditaduras de esquerda que vivem um inaudito conflito com o sempre complacente Brasil sob o PT.
Nas reuniões preparatórias dos chamados sherpas, alusão diplomática ao povo dos Himalaias que guia grupos pelas montanhas, mapeando dificuldades, foi levantada a hipótese de empatar o convite trazendo a moderada Colômbia, mas Bogotá não tem interesse nisso.
Não é um abacaxi só do brasileiro. A Turquia pediu seu ingresso no fim de setembro, na peculiar posição de país-membro da Otan [aliança militar liderada pelos EUA] e amiga de Putin. A China não gostou nada disso, antevendo uma segunda Índia na agremiação –o país do premiê Narendra Modi é próximo da Rússia, mas rival figadal de Pequim na Ásia, onde integra uma aliança com os EUA, Japão e Austrália.
Esse cipoal deve levar à solução dos parceiros, restando saber quantos serão –não mais do que nove, número de membros plenos. Até o Talibã, o grupo fundamentalista islâmico que retomou o poder no Afeganistão após 20 anos de ocupação americana, em 2021, pediu para ser recebido.
Para Putin, a presença de diversos atores daquilo que se convencionou chamar de Sul Global, um disparate dadas as diferenças de potência e agenda dos integrantes, será uma prova de que não está isolado –mesmo tendo de evitar a reunião do G20 no Brasil para não causar celeuma ou arriscar ver algum juiz pedir sua prisão sob ordens do Tribunal Penal Internacional, onde é processado.
Na reunião ampliada do bloco, na quinta (24), o secretário-geral da ONU irá participar. Ao todo, 24 chefes de Estado ou de governo de 32 países, entre 38 convidados, estarão em Kazan.
A boa relação de Lula com o russo é uma política de Estado: Jair Bolsonaro (PL) esteve no Kremlin uma semana antes da invasão da Ucrânia.
Com tantas rusgas políticas e a sobra da eventual volta de Donald Trump ao poder nos EUA, que embaralhará várias cartas se ocorrer, restará a agenda econômica, que também é díspar entre os integrantes do Brics.
Palavras otimistas serão ditas sobre o comércio em moedas nacionais, que de resto se tornou uma realidade presente na Rússia devido às sanções ocidentais que desplugaram o país do SWIFT (sistema internacional de pagamentos), entre outras restrições, devido à guerra.
Os temas à mesa
Agendas conflitantes
China e Rússia, agora com a chamativa presença do Irã, têm usado o Brics para avançar sua agenda antiocidental. Os países democráticos do bloco, como o Brasil, defendem multilateralismo, mas rejeitam que ele se torne um ente político.
Ucrânia
A Guerra da Ucrânia, até pelo fato de a cúpula ser na Rússia, será o bode na sala do encontro. A China e o Brasil, contudo, buscam apoio à sua proposta de uma reunião de paz, rejeitada no Ocidente.
Oriente Médio
Mais consenso deverá ocorrer acerca da guerra no Oriente Médio, dada a prevalência de países anti-Israel no bloco, a começar pelo novato Irã. Os Emirados, em paz com Tel Aviv, podem contudo oferecer um contraponto.
Expansão do Brics
China e Rússia gostariam de ver mais uma rodada de expansão, mas há resistências políticas de Brasil, Índia e África do Sul. A solução intermediária será a criação da categoria parceiros do bloco.
Quem entra?
Até aqui, o consenso é de que não pode haver mais parceiros do que sócios (nove). Há postulações desagradáveis ao Brasil, como a da Venezuela e da Nicarágua, e à China, como a da Turquia.
Comércio
Os discursos serão unânimes ao falar da importância do comércio com moedas nacionais, e não o dólar. Na prática, isso segue sendo difícil: quase 70% do comércio mundial é na moeda norte-americana.
Finanças
Ainda mais complexo é promover um sistema de pagamentos alternativo ao Swift, padrão mundial desde 1973. A desconexão da Rússia devido à guerra incentiva a ideia, mas ela é de difícil execução.
Banco dos Brics
Considerado um caso de relativo sucesso do bloco, o NDB (ou Banco dos Brics) pode ter sua musculatura ampliada em iniciativas a serem tomadas pelos novos membros do grupo.
IGOR GIELOW / Folhapress