Sem reforma radical das polícias, não há como eliminar milícias, diz diretor de ‘Tropa de Elite’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Corrupção, violência e ligação entre polícias, políticos e milicianos, temas retratados na saga “Tropa de Elite”, seguem atuais, diz o diretor do título, José Padilha, ao analisar as novidades na investigação sobre a morte de Marielle Franco.

Aos 56 anos, o cineasta que também comandou o premiado documentário “Ônibus 174” e a série “O Mecanismo”, criticada por referências elogiosas à Operação Lava Jato, chegou a ser convidado a integrar uma equipe empenhada em lançar série ficcional sobre a ex-vereadora carioca na Globoplay.

O projeto foi anunciado em 2020. Em nota, a Globo afirmou que saiu do projeto “diante de divergências criativas” e que planeja ampliar sua série documental “Marielle, o documentário”, com as novas revelações do caso.

Em entrevista à Folha, Padilha explica seu envolvimento na produção, comenta a criminalidade no Rio de Janeiro e dá sua opinião sobre o legado de Marielle.

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*Folha – São 17 anos desde o lançamento de “Tropa de Elite”, que aborda temas como corrupção policial, violência urbana e milícias. Tudo isso volta à tona com a investigação sobre o assassinato da Marielle. O sr. acredita que a obra segue sendo um espelho da sociedade carioca?*

*José Padilha -* Acho que o “Ônibus 174”, o Tropa 1 e o Tropa 2, tomados como uma obra em três partes, pintam um quadro realista da sociedade carioca. O “Ônibus 174” documenta a tirania com que o Estado trata jovens condenados por crimes pequenos, como furtos. E mostra a tortura que são nossos presídios lotados. Isso explica em parte por que formamos criminosos violentos. O Tropa 1 aborda a formação, também pelo Estado, de policiais corruptos e violentos, que matam e torturam nas favelas. Já o Tropa 2 mostra o momento em que agentes do Estado, policiais, bombeiros, vereadores e deputados estaduais, se articulam para atuar como máfia nas favelas, dominando atividades básicas como o transporte, o acesso a TV a cabo e o gás.

Infelizmente, tudo isso continua atual.

*Folha – Como avalia a maneira como o poder público lidou esses temas desde então?*

*José Padilha -* Não lidou. O Brasil é responsável por 20% dos assassinatos no mundo. Há um genocídio em andamento nas favelas do Brasil faz mais de 30 anos, temos uma das polícias mais violentas e ineptas do mundo faz mais de 30 anos e praticamos tortura de Estado nas cadeias faz mais de 30 anos. Nossas lideranças políticas se omitiram e ainda se omitem face ao nosso genocídio recorrente. Todas elas, sem exceção.

*Folha – Especificamente sobre as milícias, por que o Rio não consegue se livrar delas?*

*José Padilha -* Porque o Rio nunca quis reformar as suas polícias. E porque os governos federais nunca fizeram um plano nacional de segurança que forçasse a unificação e a reforma estrutural das polícias no Brasil. Sem uma reforma radical das polícias, não há como eliminar as milícias.

*Folha – O sr. participa de um projeto sobre a Marielle, apresentado em 2020, que não saiu do papel..*

*José Padilha -* O projeto não é meu. Fui convidado a participar dele. Na minha opinião, o projeto foi anunciado prematuramente. Até ontem, não sabíamos quem havia assassinado a Marielle e o Anderson, e por quê. Sobre cronograma: eu não tenho controle formal sobre o projeto e pouco participei dele nos últimos anos. Dito isso, se eu puder ajudar a viabilizar um projeto sério sobre a história da Marielle, o farei. É uma história importante, que precisa ser contada, de forma contundente e pelas pessoas certas.

O sr. enfrentou muita resistência ao ser anunciado como participante desse projeto. As críticas eram escoradas em dois fatores: ser um homem branco e ter dirigido “O Mecanismo”, com referências à Lava Jato. O que pensa dessas críticas?

Acho ambas as críticas esclarecedoras. Mudaram a minha maneira de pensar.

*Folha – O sr. já se declarou um admirador de Marielle. Qual foi seu contato com a vereadora? Qual sua análise sobre a figura e, sendo um simpatizante, essa série se torna algo mais pessoal e intimista?*

*José Padilha -* Vou começar pela segunda parte da pergunta.

Fui convidado a participar da série porque entendo um pouco sobre as milícias e o crime no Rio. A minha parte no projeto sempre foi estruturar e articular a história do Lessa –agora expandida para a história dos mandantes do crime– com a estrutura geral da série.

Conheci a Marielle no mesmo dia que em que ela conheceu o Marcelo Freixo, numa exibição do “Ônibus 174” no Odeon, seguida de debate entre mim e Freixo. A Marielle ficou até o final pra falar conosco.

Depois estive com a Marielle em debates relativos ao “Tropa de Elite”, também com o Marcelo. Ela sempre foi crítica em relação ao “Tropa” e sempre gostou muito do “Ônibus”.

Finalmente, a Marielle me ajudou bastante durante a CPI das Milícias na Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro], quando estava fazendo pesquisa para o “Tropa 2”. E depois no próprio filme, na construção do Fraga, personagem inspirado no Marcelo.

São muitos os motivos para admirar a Marielle. A sua perseverança em face as dificuldades de alguém que cresceu na Maré e se formou na PUC (Pontifícia Universidade Católica), a sua coragem de enfrentar o status quo religioso e político, a sua inteligência e habilidade de se expressar de forma clara e direta, a sua atuação junto às comunidades carentes e ONGs, a defesa dos direitos das mulheres e a oposição radical ao racismo no Brasil, e a coragem para fazer o enfrentamento político a pessoa poderosas e perigosas. Tudo isso por trás de um sorriso contagiante.

BRUNO LUCCA / Folhapress

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