SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As serpentes evoluíram em uma taxa mais rápida e conseguiram conquistar diferentes nichos evolutivos se comparadas aos demais répteis do grupo Squamata, os lagartos.
As cobras são répteis altamente especializados, que vivem em equilíbrio nos ambientes onde ocorrem e que se adaptaram para comer um tipo específico de presa.
Em contrapartida, os lagartos são muito mais generalistas, podem se adaptar a diferentes habitats e se alimentam de uma gama de alimentos variada.
As descobertas estão em artigo publicado recentemente na revista Science. Assinam o trabalho cientistas estrangeiros e brasileiros, incluindo Gabriel Costa, da Universidade de Auburn (Alabama), Ivan Prates, da Universidade de Michigan, Daniel Mesquita e Lucas Cavalcanti, da Universidade Federal da Paraíba, e Guarino Colli, professor do departamento de zoologia da UnB (Universidade de Brasília). O trabalho é coordenado por Daniel Rabosky, do Museu de Zoologia do departamento de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Michigan.
O grupo Squamata inclui as serpentes, os lagartos e as anfisbenas (conhecidas como cobras-de-duas-cabeças). A principal característica que diferencia as serpentes dos lagartos é a ausência de patas, embora haja também algumas espécies de lagartos ápodes (sem membros).
Dentre as mudanças ocorridas na árvore de Squamata que caracterizam o sucesso evolutivo das serpentes estão a redução dos ossos do crânio e a maior mobilidade das mandíbulas, possibilitando engolir presas maiores do que o próprio corpo.
No estudo da Science, os pesquisadores calcularam a taxa de evolução (frequência com que novas características evolutivas surgem) com base em uma árvore evolutiva de dados genéticos de 1.018 espécies de cobras e lagartos.
A análise inclui ainda dados de morfologia dos animais, isto é, de características da anatomia interna e externa, além de informações sobre hábitos ecológicos e dieta. O conjunto de dados foi construído ao longo de décadas com a colaboração grupos de trabalho distintos envolvidos na pesquisa.
“É a maior base de dados para o grupo e, podemos dizer, a mais completa árvore evolutiva até o momento”, diz Costa, da Universidade de Auburn.
Há, hoje, 11.769 espécies de répteis Squamata divididos em lagartos (7.458), serpentes (4.108) e anfisbenas (203). Embora os lagartos sejam mais numerosos, a diversificação ocorrida nas linhagens que deram origem aos lagartos atuais foi em uma taxa bem mais lenta do que nas serpentes, revela o novo estudo.
“Os lagartos possuem um tamanho médio de 20 centímetros e, em geral, alimentam-se de insetos e outros artrópodes. Já as serpentes são lagartos que se diferenciaram com esse corpo alongado e a redução dos membros. Elas se especializaram também na captura de presas grandes”, explica Colli, da UnB.
“Quando a gente olha um lagarto, ele come uma diversidade muito grande de presas, enquanto as serpentes têm essa morfologia especializada na captura e ingestão de determinados tipos de presas. Isso levou a um grande número de espécies e a uma diversificação mais rápida.”
O estudo evidencia isso, mostrando como as serpentes tiveram, em média de 1,6 a 3 vezes mais diferenciações em relação aos lagartos.
“Geologicamente falando, a diversificação das serpentes ocorreu em um período de tempo curto. Isso foi testado com um conjunto de evidências morfológicas, genéticas e ecológicas. Acredito que algumas modificações no início da evolução do grupo as levaram a explorar esse ambiente de forma diferente. E isso não parou, o processo continua”, afirma Costa.
Para Rabosky, as inovações evolutivas das serpentes seriam traços (como, por exemplo, a mobilidade do crânio) que permitiram a descoberta de novas “zonas ecológicas” para o grupo. “Suponha, por exemplo, que os crânios flexíveis das serpentes sejam uma inovação. Isso permite que diferentes espécies se especializem em diferentes recursos, e os crânios podem ainda se diferenciar evolutivamente uns dos outros, mas o traço ‘crânio flexível’ ainda está fixo nas serpentes”, explica o pesquisador.
Há, porém, um dado ainda não respondido na pesquisa: a origem do grupo das serpentes. As evidências atuais indicam para uma origem terrestre, a partir de ancestrais de lagartos que viviam enterrados e se alimentavam de pequenas presas. Não há, porém, registros fósseis desses parentes ancestrais encontrados até hoje.
“Nossa análise se concentra nos ramos terminais [“tips”, em inglês] da árvore, e não nos nós [interseções entre ramos], por isso não temos informações sobre as inovações deixadas no registro fóssil. Dito isso, incluir fósseis em análises evolutivas poderia fornecer muito mais precisão sobre quando e como as taxas evolutivas nas serpentes começaram a crescer”, diz Rabosky.
Houve um esforço contínuo e coletivo de todos os colaboradores envolvidos no estudo -um dos autores, Eric Pianka, foi um grande especialista em ecologia e evolução de lagartos e morreu em 2022. “O artigo é resultado de um grupo de pessoas que já colabora há muito tempo em função desses laços que a gente estabelece na formação. Usamos dados de diversas coleções científicas do mundo, elas tiveram um papel crucial na geração dessa base, e isso vai poder ser consultado por pesquisadores futuros”, afirma Colli.
O herpetólogo e curador da coleção de Herpetologia do Instituto Butantan, Felipe Grazziotin, que não participou do estudo, comentou o artigo a pedido da reportagem. “Em termos de quantidade, há estudos que incluíram mais espécies, e há outros que incluíram mais dados, mas ele possui um grande conjunto de informações e, com certeza, será muito útil para estudos de ecologia e evolução relacionados aos lagartos e às serpentes”, disse.
“Contudo, do ponto de vista do avanço do conhecimento científico, esse artigo na verdade corrobora aquilo que já era óbvio. Eles confirmam, através de uma análise de um conjunto de dados gigantesco e com estatísticas sofisticadas, o que todos que estudam as serpentes já diziam: como elas representam o grupo de vertebrados mais diferente de todos os outros, em termos de características evolutivas”, afirma.
Grazziotin cita o caráter inovador do estudo, e como este poderá servir de base para pesquisas futuras. Ainda, como o próprio nome do artigo já diz, a “singularidade” das serpentes está no fato de este ser “um dos grupos mais sofisticados de vertebrados que a evolução já proporcionou”.
ANA BOTTALLO / Folhapress