SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O setor privado tem tido efeito negativo no cumprimento da chamada Agenda 2030, ano previsto para o alcance das metas que compõem os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) acordados no âmbito da ONU. A avaliação é de Alessandra Nilo, coordenadora do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, que reúne 64 organizações atuantes no Brasil e que elabora, desde 2017, o Relatório Luz, documento que avalia a implementação dos ODS no Brasil.
A edição de 2024 do documento, lançada nesta semana na sede da ONU em Nova York, apontou que o Brasil apresentou progresso insuficiente em 1 a cada 3 metas das 168 ligadas aos ODS avaliadas pelo estudo. Uma a cada 4 dessas metas está estagnada (25,6%) ou sofreu retrocesso (23,8%), enquanto 5,9% estão ameaçadas e 7,7% tiveram progresso considerado satisfatório, ou seja, são metas com chances de serem atingidas em 2030.
“O setor privado ao qual me refiro é o das megacorporações, das empresas extrativistas e daquelas que não estão aliadas ao desenvolvimento sustentável. Alguns setores têm causados os maiores danos ao meio ambiente, aos direitos humanos e à saúde”, aponta.
Ela afirma que o setor privado tem sido convidado a contribuir com a Agenda 2030. “Mas, infelizmente, parte dele ainda não está alinhado de forma suficiente com o desenvolvimento sustentável ou tem usado, como alinhamento, essa ideia de ESG, que é a grande moda”, diz, apontando para a desproporção entre ações danosas provocadas por certas corporações vis à vis suas alegadas práticas sustentáveis.
Segundo Nilo, essas corporações têm ocupado espaços nacionais e internacionais, como o G20 e as Nações Unidas. “Elas pedem desregulamentação, aumento de subsídios governamentais e um ambiente favorável aos negócios. E têm enorme influência no Congresso Nacional Brasileiro”, afirma ela, que também e coordenadora do C20, grupo de 1.700 organizações internacionais em diálogo com o G20, grupo das 20 maiores economias do mundo.
Nilo avalia que o setor privado no Brasil não quer correr riscos. “Quer que o governo banque os riscos para que ele depois colha os frutos, numa lógica muito estranha e desigual”, diz, com uma ressalva. “Não se pode generalizar. O setor privado tem de tudo. Mas existe um grupo que é muito forte, de grandes corporações, geralmente ligadas às multinacionais, que estão causando um dano terrível ao planeta na sua combinação.”
Outro ponto em que a atuação do setor privado é criticada no relatório é no estabelecimento de parcerias público-privadas (PPP) que criam relações pouco transparentes com governos nacionais e subnacionais, o que dificulta monitoramentos e cobranças de atuação.
“O Brasil avançou muito nesses últimos anos em processos de construção de PPPs, mas muitas delas sequer nos permitem acesso aos documentos sobre o tipo de parceria está sendo feita no momento em que governos entregam ao setor privado estruturas construídas com recursos públicos”, critica. Ela cita como exemplo os modelos de concessão que têm órgãos de regulação e fiscalização “não suficientemente fortes para garantir serviços de qualidades acessados por todas as pessoas”.
De acordo com Nilo, as discussões do grupo de trabalho sobre a Agenda 2030 têm tratado do papel dos bancos públicos no desenvolvimento sustentável. “A gente precisa fazer com que os recursos públicos financiem projetos e iniciativas que beneficiam a coletividade, e não projetos e iniciativas que beneficiam um grupo muito limitado de pessoas, deixando de fora a maioria.”
O secretário-geral da ONU, Antônio Guterrez, declarou que, no ritmo atual, sequer 17% das metas dos ODS serão alcançadas. Entre os ODS versam sobre temas como erradicação da pobreza (1º) e da fome (2º), educação (4º) e igualdade de gênero (5º), acesso à água (6) e à energia (7), promoção do crescimento econômico sustentável (8º) e medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos (13º).
Os resultados do Relatório Luz 2024, baseados em dados de 2023, podem parecer trágicos, mas eles representam uma melhora em relação aos dados dos três últimos anos, quando mais da metade das 168 metas avaliadas estavam em retrocesso e no máximo 1% delas tinha progresso considerado satisfatório.
“Apesar de 58 das 168 metas avaliadas terem avançado de alguma forma, esse avanço é insuficiente para alcançarmos essas metas em 2030. Mesmo assim, esse dado precisa ser considerado em relação ao do ano passado, o que reflete um esforço para a reconstrução e retomada de políticas públicas que já deveriam estar nos entregando muito mais hoje”, afirma.
Para ela, o avanço é lento porque o passivo é enorme e tem raízes na má gestão da pandemia e na falta de priorização das políticas sociais e climáticas.
“O Brasil está ainda com muita dificuldade para se recuperar porque o estrago foi muito grande nesses últimos anos. Desde 2013, quando tivemos anos de PIB negativo, essas políticas públicas sociais e climáticas foram se desorganizando, o que culminou com o governo Bolsonaro, que atuava contra uma série de direitos. Então, o desafio é muito grande.”
Crítico desde 2017 à Emenda Constitucional 95, do teto dos gastos, o relatório aponta que o novo arcabouço fiscal ainda é insuficiente para alocar recursos em áreas sensíveis como saúde, educação e promoção da igualdade de gênero.
Entre os ODS com pior desempenho no Brasil está o número 4, que pretende “assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos”. Das dez metas avaliadas ligadas ao ODS4, cinco estão em retrocesso, duas estão ameaçadas, uma estagnada e outras duas com progresso insuficiente.
“A dificuldade de avançar na educação também é fruto de ataques ao processo das políticas públicas e de tentativas de privatização. Quando a gente coloca uma lente de aumento, observa que houve uma tentativa de mais investimento na educação pública, mas é um setor muito cobiçado pelo setor privado.”
FERNANDA MENA / Folhapress