BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Quando Claudia Sheinbaum for empossada presidente do México nesta terça-feira (1º), tornando-se a primeira mulher a fazê-lo, muitos se perguntarão se seu padrinho político, o presidente cessante Andrés Manuel López Obrador, aproveitará a aposentadoria.
AMLO, como é conhecido, diz que dará adeus à política, refugiando-se no estado de Chiapas. Descansar, escrever livros e caminhar seriam os seus planos daqui em diante. Ocorre que a participação que ele terá ou não nos próximos seis anos de governo Sheinbaum é entendida como fundamental para definir os futuros da administração.
Aos 62 anos, e tendo sido governadora da Cidade do México e cientista, a nova presidente é vista como alguém com um capital político incerto. Mais técnica e pragmática e menos personalista e populista do que AMLO são os adjetivos-comuns que vêm sendo usados para descrevê-la.
A grande dúvida é qual o tamanho de sua vontade (e de sua força) para trilhar um caminho diferente do de López Obrador. “Seu capital político real é uma grande dúvida, assim como se ela vai ter autonomia da liderança carismática de AMLO; até aqui, na transição, não foi esse o indicativo”, diz a cientista política Flavia Freidenberg, professora e pesquisadora na Universidade Autônoma do México, a Unam.
“Mais do que isso, quando ela começar a colocar em prática um governo mais descafeinado em comparação com o de seu padrinho, os mais fervorosos do Morena, partido governante, com certeza tentarão limitá-la”, adenda Sofia Fuentes, da consultoria Prospectiva.
Em sua saideira da Presidência, AMLO deu o sinal. “Estou muito satisfeito com o tratamento da presidente comigo: respeitoso até o final”, afirmou nesta segunda (30). “Para qualquer outro que fosse complexado, o primeiro ato teria sido se distanciar de mim ou começar com indiretas, para se diferenciar, para dizer: ‘Agora sim começa a mudança’.”
É uma transferência de poder que para alguns analistas faz lembrar o que ocorreu no Brasil, com a passagem do bastão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para Dilma Rousseff, ainda que em uma comparação comedida, já que a última cena política de Dilma foi o impeachment.
Lula, aliás, é uma das principais figuras políticas que acompanhará a posse de Sheinbaum na Cidade do México. Também comparecem os presidentes Gabriel Boric (Chile) e Gustavo Petro (Colômbia) e o líder da ditadura de Cuba, Miguel Días-Canel, entre outros. Os EUA serão representados pela primeira-dama Jill Biden.
Mas, se por um lado tem sua força própria colocada em jogo, por outro Sheinbaum tem muito poder institucional em suas mãos. Sua chegada ao Palácio Nacional coincidirá com o momento de maior força do Morena, o Movimento Regeneração Nacional fundado por AMLO há pouco mais de dez anos. A nova presidente tem as cartas do jogo.
Junto a outras duas siglas minoritárias aliadas, o Partido Verde (PVEM) e o Partido do Trabalho (PT), o Morena obteve maioria qualificada na Câmara dos Deputados, o que lhe permite aprovar alterações na Constituição com muito mais facilidade. No Senado, chegou perto (83 cadeiras das 86 necessárias).
Mais do que isso, a nível nacional os estados mexicanos foram pintados de vermelho. O Morena estará nos governos de 22 dos 32 estados do país, além da capital Cidade do México. Validar suas propostas a nível local se tornará mais fácil.
Foi com essa supermaioria parlamentar, que acende o temor da volta de uma hegemonia partidária e de práticas pouco democráticas de governar em um país que já foi liderado pelo mesmo partido por mais de 70 anos, que AMLO deixou como última herança para Sheinbaum a aprovação de uma contestada reforma judicial.
Com a justificativa de barrar a corrupção no Judiciário, essa reforma define que 1.600 cargos do setor passarão a ser eleitos por voto popular, entre eles os nove dos ministros do Supremo.
Os críticos apontam que a mudança vai expor juízes a influências de partidos políticos e grupos de lobby, comprometendo a independência do Poder, e que os juízes poderão estar vulneráveis a pressões de grupos do crime organizado ou de seus potenciais patrocinadores. O governo argumenta que a reforma permite campanhas políticas, mas veta financiamento público ou privado.
O que ocorrerá com o Judiciário mexicano é uma dúvida em aberto, mas de concreto há o quão desgostosos ficaram os Estados Unidos e o Canadá, parceiros da América do Norte com os quais o México tem um acordo de livre comércio, o T-MEC, a joia da economia mexicana.
O acordo prevê em suas cláusulas que o Judiciário dos países-membros deve ser independente, e diplomatas americanos e canadenses já criticaram publicamente a reforma.
A bomba está no colo de Sheinbaum: caberá a ela a renegociação do acordo, que ocorre em 2026, no segundo ano de seu sexênio no poder. É o T-MEC que faz brilhar os olhos do empresariado mexicano, já que é fundamental para fazer do México um país atrativo para o nearshoring, a transferência das cadeias produtivas globais para o país.
Outra ampla reforma na esteira do Morena também tende a desagradar os parceiros internacionais: a administrativa, com a qual o governo quer enxugar o número de agências autônomas e subordiná-las às secretarias, ou ministérios, que respondem diretamente à presidente.
Neste sentido, coube a Lula fazer um apelo ao empresariado mexicano. Durante o início de sua visita à Cidade do México nesta segunda-feira, ele disse que o setor “não deve ter medo”. “Sheinbaum está armando um governo que, ao que parece, desde o início, está comprometido com as melhores práticas da democracia.”
A primeira mulher presidente do México também herda os dilemas da segurança pública em uma das nações mais perigosas do mundo. Os homicídios diminuíram nos últimos anos de López Obrador no poder, mas ainda assim o seu sexênio foi o mais violento da história recente.
Também foi o período que mais acumulou desaparecimentos de pessoas, um crime que assombra o México nas últimas duas décadas impulsionado pelo narcotráfico. Atualmente há mais de 104 mil pessoas que seguem desaparecidas no país. E foram os anos de morenistas no poder os que mais acumularam desaparecimentos: 44,8 mil.
Sheinbaum também enfrenta cobranças naturais por seu gênero. E não apenas por ser mulher, mas por ter dito na campanha que faria mais pelas mexicanas, alvos de altas cifras de violência de gênero. Ela criou um Ministério da Mulher, mas ações mais arrojadas para essa parcela da população dependem de com qual independência a nova presidente vai caminhar.
Suas ações a nível internacional serão em grande medida ditadas pela decisão que seu vizinho do norte, os EUA, tomar em 5 de novembro, ao escolher entre Kamala Harris e Donald Trump para a Casa Branca.
“É como se o México vivesse um ponto de inflexão importante hoje. Sheinbaum pode ir para um lado, ou para outro completamente diferente. Pode ser a responsável por impulsionar o nearshoring e a abertura do mercado. Pode também ser a líder que vai acompanhar a insegurança jurídica que trazem as reformas judicial e administrativa”, diz Sofía Fuentes, da Prospectiva. Os próximos meses dirão.
MAYARA PAIXÃO / Folhapress