SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A história política brasileira já reservou um horário mais nobre ao sindicalismo.
Um dos presidentes mais populares que o país já teve, afinal, saiu de seus quadros –Lula ganhou envergadura nacional após liderar, aos 32 anos, a greve dos metalúrgicos do ABC na rabeira dos ditatoriais anos 1970. Sindicalistas depois formariam a base do seu Partido dos Trabalhadores, o PT, ao lado de intelectuais e setores progressistas da Igreja Católica.
Mas os tempos mudaram e oxidaram a era de ouro do movimento que se apresenta como guardião da classe trabalhadora. Claro que os sindicalistas ainda têm bala na agulha, sobretudo após o retorno de Lula à Presidência revigorar elos históricos com o grupo.
A bem da verdade, qualquer troca de guarda com a gestão Jair Bolsonaro (PL), que fechou portas literais a líderes sindicais ao sequer recebê-los em Brasília, seria bem-vinda para o movimento. O petista recriou o Ministério do Trabalho e o entregou a Luiz Marinho, que tal qual o chefe já esteve à frente do Sindicato dos Metalúrgicos.
O auge, contudo, ficou para trás, segundo especialistas. Antes pilar da esquerda, hoje o campo se acotovela para ganhar espaço entre causas mais midiáticas, como a questão identitária protagonizada por feministas, antirracistas e ativistas LGBTQIA+.
Também tenta emplacar a volta do imposto sindical, extinto pela Reforma Trabalhista promovida na gestão de Michel Temer (MDB).
A reforma, no entanto, é coadjuvante nessa redução da densidade sindical, de acordo com Hélio Zylberstajn, professor do Departamento de Economia da USP e coordenador do Salariômetro, que acompanha o mercado de trabalho formal mês a mês.
“O fenômeno não é exclusividade brasileira. Há várias causas, e uma delas é o decréscimo do emprego na indústria, o berço do sindicalismo.”
“Os ‘blue collars’ [trabalhadores uniformizados de colarinho azul] ilustravam a imagem típica dos melhores tempos do sindicalismo, com massas muito parecidas, com aspirações e identidade em comum”, afirma.
O “cada um por si” na chamada uberização da mão de obra, que implode vínculos empregatícios e impõe nova lógica trabalhista, colabora para a decadência do monopólio sindical.
Até fatores demográficos perturbam o movimento: há agora mais mulheres no mercado de trabalho, e elas historicamente aderem menos à sindicalização.
O movimento é capilarizado o suficiente para mobilizar a base quando precisa, mas quem fomentou as maiores voltagens políticas recentes foram outras fatias da sociedade civil. Se você pensou nos protestos de junho de 2013, você pensou correto.
O sindicalismo apanhou um bocado nos últimos anos, antes mesmo do bolsonarismo entrar em cena.
Sancionada em 2017 por Temer, alçado à Presidência após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), a Reforma Trabalhista drenou recursos valiosos para os líderes sindicais ao extinguir o imposto sindical –contribuição obrigatória descontada na folha de pagamento, que surge na década de 40 para financiar o movimento.
Mas isso é um cisco local perto de uma tendência global, afirma Zylberstajn.
Aos fatos, primeiro. O IBGE estima que, em 2022, 9,2% dos trabalhadores brasileiros estavam associados a um sindicato. Em 2012, a taxa era de 16%.
O sociólogo Celso Rocha de Barros, autor de “PT, Uma História”, lembra que o sindicalismo brasileiro tem longa tradição de combatividade, desde a Velha República. “O que muitas vezes lhe faltou foi uma democracia em que pudesse se desenvolver plenamente.”
Getúlio Vargas, que em 1943 pariu a CLT, conjunto de leis que protege direitos trabalhistas, manteve sindicatos pela coleira. Alguma autonomia despontou depois da ditadura varguista, mas a repressão militar a partir de 1964 os empurrou à clandestinidade.
O ciclo de greves do ABC paulista projetou Lula, que cria o PT com forte presença sindical. A ligação com a esquerda já está consolidada, algo que num primeiro momento incomodava o líder metalúrgico, como lembra Fernando Morais, autor da biografia sobre o hoje presidente da República.
O petista não se via no lado canhoto do espectro político e tinha horror a comunistas.
“Refugava irritado quando o irmão mais velho, o Frei Chico, tentava atraí-lo para o Partidão [Partido Comunista Brasileiro]. O interesse pela estrela que começava a brilhar no ABC fez com que o partido destacasse um alto dirigente do PCB para viajar do Rio a São Bernardo do Campo, para tentar recrutar Lula. Ele voltou ao Rio de mãos abanando.”
Os anos 1980 foram solo fértil para o sindicalismo verde-amarelo, aparentado à linha europeia, mais politizada e ideológica, aponta Zylberstajn –uma contrapartida ao modelo americano, “mais pragmático do que militante”, que “vai barganhar para arrancar mais” de uma sociedade onde o capitalismo parecia estar dando certo.
A industrialização brasileira, no entanto, “entra em marcha ré, e a recessão da era Fernando Collor tem um papel fortemente desmobilizador”, afirma Rocha de Barros. A chegada do PT ao Palácio do Planalto, em 2002, tonifica mais uma vez os sindicalistas.
“O movimento tem sido fundamental para a conquista de direitos dos trabalhadores”, diz Cristiane Pereira Vianna de Oliveira, que dá aulas de direito do trabalho no Centro Universitário do Distrito Federal.
Mas os desafios atuais, segundo a professora, se avolumam e enfraquecem o setor, preso a uma organização defasada.
Os exemplos mais gritantes: a unicidade sindical, que só permite uma entidade por categoria profissional no município, e a pressão por uma nova contribuição compulsória dos trabalhadores, que financiaria as negociações coletivas realizadas pelos sindicatos.
Sua validade depende de decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que já formou maioria a favor da causa sindical.
Para Zylberstajn, da USP, o movimento “quer voltar ao que já teve” e insistir num sistema moldado para tempos passados. “Mas o mundo é outro. Eles pegaram o rescaldo do que sobrou do lulismo e estão no aparelho de Estado, mas propondo soluções absolutamente ultrapassadas.”
Ele dá como exemplo Marinho, ministro do Trabalho, que em fevereiro disse ao jornal Valor Econômico que a Uber deveria se adaptar à regulamentação do trabalho, ou “posso chamar os Correios, que é uma empresa de logística, e dizer para criar um aplicativo e substituir”. Nada realista.
Nessa toada, também houve o caso do sindicato de Sorocaba e região, que virou motivo de polêmica entre trabalhadores neste mês após a convenção coletiva da categoria trazer a cobrança de contribuição assistencial de 12% ao ano sobre o valor do salário de profissionais ou pagamento de uma taxa de R$ 150 para quem se opusesse à cobrança.
Embora as negociações entre o sindicato e as empresas tenham ocorrido antes de o STF (Supremo Tribunal Federal) julgar constitucional a cobrança de contribuição assistencial de trabalhadores -desde que definida em assembleia e com direito à oposição-, as exigências da convenção chegaram aos trabalhadores após a decisão da corte, o que aumentou a indignação de quem é contra.
Em vez de “pregar no deserto”, é preciso “pensar fora da caixa” num mundo que caminha cada vez mais para profissionais autônomos.
“É uma imagem difícil de ser aceita pelo sindicalismo. Ele não está aberto para reconhecer que a produção se organiza hoje em esquemas muito diferentes, que prescindem do vínculo trabalhista, e portanto da representação específica dos trabalhadores.”
Miguel Torres, presidente da Força Sindical, não nega as pedras no caminho. “Hoje tem muita gente que não está mais no mercado de trabalho formal. Gente de home office, distante do mundo sindical, em plataformas. A tecnologia diminuiu os empregos.”
Mas aposta em campanhas de mobilização, como as que garantiram vitórias nas negociações com patrões durante cortes e reduções de jornadas na pandemia da Covid-19. Também vê fôlego renovado no Lula 3. “Nos quatro anos de Bolsonaro, não fomos recebidos nenhuma vez pelo presidente. Até nos ministérios não nos recebiam. Hoje, não. Já tive audiência em 22 ministérios [no novo governo].”
Ivone Silva, que presidia o Sindicato dos Bancários até assumir em julho o comando do Instituto Lula, diz que o sindicalismo está se atualizando sempre e hoje conta com notas identitárias. Uma forma, diz ela, de rejuvenescer a faixa etária no grupo e formar novas lideranças.
“Há [uma ala] que entende a importância da luta coletiva em temas da diversidade como gênero, raça e orientação sexual. Isso e um ambiente mais democrático têm sido fundamentais para o engajamento da juventude.”
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress