FOLHAPRESS – Em sua nona e derradeira sinfonia, Beethoven decidiu trocar de posição o movimento lento: tradicionalmente o segundo dos quatro comumente presentes nas peças clássicas, ele surgiu lá em terceiro lugar, após o enérgico e dançante “Scherzo”. Nas gerações seguintes, sinfonistas passaram, vez ou outra, a tomar essa nova ordenação como estratégia em suas obras.
É o caso da “Sinfonia nº 6” também conhecida como a “Sexta” ou a “Sinfonia Trágica”, de Gustav Mahler, que a Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, apresenta nesta semana na Sala São Paulo, composição que estreou em 1906.
Surpreendentemente e a despeito de o programa impresso trazer a ordem regular prevista na partitura de Mahler, o regente Thierry Fischer propositalmente “destrocou” essa ordem, fazendo o “Andante” como segundo e o “Scherzo” como terceiro movimento, tal como era praxe nos tempos de Mozart. A escolha surtiu efeito, sobretudo por ter capturado a atenção do público, dilatando a concentração.
E mesmo quem discorde da ousadia terá de admitir que, na quinta-feira (22), a orquestra interpretou a sinfonia com grande categoria, na talvez melhor versão mahleriana de Fischer com a Osesp até aqui. Como sabemos, o regente suíço está em meio a um ciclo completo de interpretações e gravações das sinfonias de Mahler, que prosseguirá nas próximas temporadas.
Uma orquestra não chega a esse ponto sem trabalho e experiência. Foram muitas as “Sextas” nos últimos 25 anos: desde a de John Neschling, no ano 2000, repetida no Teatro Colón, na Argentina, ou a do dinamarquês Thomas Dausgaard, em 2010, parte do ciclo integral realizado com diferentes maestros, até chegar a Marin Alsop, em 2017.
Antes do início do concerto, boa parte das pessoas aparentava estar cansada diante do desafio de enfrentar um programa contendo uma única peça com duração prevista para 1h30, sem intervalo. Alguns apelavam até mesmo para um segundo café como parte da preparação.
Fischer tomou tempos perfeitos para cada movimento, tirando a impressão ainda presente na memória da abertura da temporada, em que havia regido a “Quinta” de que sua busca por perfeição tenderia a deixar os andamentos um tanto lentos. Não foi o caso.
Tocar Mahler é perseguir com afinco um estilo. A afinação esteve primorosa nos corais de metais do primeiro movimento, e o dueto de violino e trompa permanece ressoando na memória.
A surpresa pela mudança na ordem do movimento lento, porém, quase foi atrapalhada pela entrada no teatro de um número enorme de pessoas entre o primeiro e o segundo movimentos. É o efeito colateral de os concertos iniciarem às 20h, novidade da presente temporada: São Paulo não é uma cidade comum, e basta o frequentador não residir em Higienópolis ou imediações para correr sérios riscos de se atrasar para o concerto.
No “Scherzo”, Thierry equilibrou a massa instrumental com os timbres camerísticos construídos delicadamente, reforçando que o capricho não precisa sacrificar o ímpeto e a urgência.
O genial efeito sonoro em si mesmo “filosófico” de, sob uma batida marcial, transformar imperceptivelmente um lá maior (bem forte) em um lá menor (muito suave), fixado já no primeiro movimento, volta obsessivamente no extraordinário “Finale”.
Temos de estar preparados para os seus quase 30 minutos: a música praticamente volta sobre si mesma, vira do avesso e, de um certo jeito, “começa de novo”. O quarto movimento é uma “sinfonia dentro da sinfonia”, com suas próprias seções, ao mesmo tempo novas e familiares.
Fischer uma vez mais controlou o tempo, criou camadas de sutileza para as cordas, deixou a trompa homenagear o som de Richard Strauss e, o mais importante, prendeu totalmente a nossa atenção.
E quando o teatral martelo do destino um dos momentos mais aguardados da obra fez a cidade de São Paulo tremer pela segunda vez, o cansaço geral, acumulado ao longo da quinta-feira, já havia se dissipado, como por encanto, fazendo o público pensar mais seriamente sobre os sentidos de Mahler e sua música.
‘SINFONIA Nº 6’ DE MAHLER NA OSESP
– Avaliação Ótimo
– Quando Sex. (23), às 20h e sáb. (24), às 16h30
– Onde Sala São Paulo – pça. Júlio Prestes 16, São Paulo
– Preço A partir de R$ 42
SIDNEY MOLINA / Folhapress
