Sobreviventes da Operação Escudo tentam provar inocência, um ano depois

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O motoboy Evandro Alves da Silva, 44, perdeu o baço e a ponta do dedo mínimo da mão esquerda, teve oito costelas quebradas e até hoje tem um projétil de chumbo alojado no pulmão. São as sequelas dos tiros de espingarda calibre 12 que o atingiram no peito durante a Operação Escudo, em Santos, no litoral paulista, há quase um ano.

Ele sobreviveu após atravessar o vitrô basculante de um banheiro, quando já estava ferido, enquanto dois policiais militares atiravam em sua direção. Em seguida, caiu de uma altura de aproximadamente sete metros.

A Escudo, que se tornou uma marca da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na segurança pública, está prestes a completar um ano. Ela foi deflagrada em 28 de julho na Baixada Santista após a morte do soldado Patrick Bastos Reis, 30, que integrava a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), batalhão de elite da PM conhecido pelo alto índice de letalidade.

Diferentes fases da ação, que neste ano passou a ser chamada de Operação Verão, deixaram um saldo oficial de 93 mortos por policiais. Se considerados todos os casos em que a PM matou nas cidades da região, inclusive quando agentes estavam de folga, chega-se ao total de 110 mortes.

Há três casos conhecidos de homens que ficaram feridos, foram hospitalizados, sobreviveram e hoje respondem a acusações relacionadas a supostos confrontos. Todos contestam a versão contada nos boletins de ocorrência por policiais.

Silva é o único que fala publicamente sobre o que ocorreu. Nos outros dois casos, há um homem que está preso e outro que responde em liberdade, mas perdeu a voz por causa dos ferimentos.

Seu relato começa em 28 de agosto de 2023, dois dias antes da data em que foi baleado. Silva conta que estava com um colega no imóvel que um grupo de motoboys aluga no Morro José Menino, em Santos. Dois policiais teriam entrado ali com chutes na porta e aos gritos.

“Quem dos dois aí tem passagem?’’, perguntaram, querendo saber se eles tinham antecedentes criminais, ele conta. O outro motoboy admitiu que já tinha respondido por tráfico de drogas, e disse que agora tinha trabalho honesto e era pai de família. “Mandaram ele ajoelhar, já começaram a engatilhar a arma.”

“E tu aí, negão?”, perguntou um PM. Silva estava há pouco mais de seis meses liberado pela Justiça para cumprir pena em regime aberto. Havia passado cerca de 20 anos preso, após se envolver em alguns roubos e num sequestro que terminou com a morte da vítima. O serviço de mototáxi era sua primeira chance de deixar o passado para trás e recomeçar a vida.

Diante dos policiais, respondeu apontando para panfletos do seu serviço: “Me chamo Evandro, sou o responsável pelo mototáxi aqui do bairro. Aqui a gente sobe e desce para o pessoal, leva no trabalho, busca na escola, na faculdade. Se precisar fazer uma entrega, buscar uma encomenda, ir na farmácia, buscar um remédio, a gente vai”.

Os ânimos teriam se acalmado na conversa, com os PMs baixando as armas e se encaminhando para a saída. Um deles insistiu na pergunta: “Como assim não tem passagem?”. Antes de ir embora, teria fotografado o RG de Silva.

Dois dias depois, conta o motoboy, os mesmos policiais voltaram. Silva conta que estava no banheiro quando ouviu ruídos na entrada e na janela frontal, e que foi atingido assim que levantou para ver quem estava tentando entrar. Eram quase 11h da manhã de uma quarta-feira.

Ferido, conseguiu em alguns segundos arrancar parte da estrutura metálica do vitrô e atravessar o espaço estreito da janela. Silva foi encontrado nu, caído de bruços no terreno atrás do imóvel.

Horas depois, o soldado que usava a espingarda afirmou em depoimento que sua equipe estava no meio de um patrulhamento quando viu o motoboy pela janela com uma pistola na mão, indo em sua direção, e por isso reagiu. Atirou ao menos duas vezes.

Os PMs portavam câmeras corporais, mas não há qualquer registro do motoboy com a pistola. Outro soldado reconheceu que abriu a janela do imóvel com as próprias mãos. Nenhum policial explica em detalhes o que os atraiu até aquele local —eles narram uma suposta perseguição de outros suspeitos, que teriam se perdido completamente de vista.

O sargento que comandava a equipe contou que, quando conseguiu arrombar a porta, disparou dois tiros de fuzil porque viu que “o indivíduo, com algo na mão, pulava a janela basculante do banheiro”. Mas nenhuma arma estava com Silva no terreno onde ele caiu, nem no banheiro.

A pistola atribuída ao motoboy foi encontrada num sofá da sala, encostado na parede oposta ao banheiro —distante do cômodo por onde ele escapou, e bem abaixo da janela onde estava o soldado que atirou com a espingarda.

A defesa do motoboy pediu que fossem levantadas as localizações de viaturas usadas pelos policiais no dia 28 de agosto, e também que se investigasse se houve alguma procura por seus antecedentes criminais nos sistema da PM. A Justiça e o Ministério Público foram contrários a esses pedidos, afirmando que o momento para conseguir essas provas seria após uma eventual denúncia contra o motoboy.

Silva conta que hoje, oito meses após ter alta hospitalar, tem crises de pânico e acorda com sobressaltos por qualquer ruído. Uma chave de sua casa e do carro da família desapareceram no dia em que ele foi baleado, o que alimenta o medo de ter sua casa invadida.

“Meu receio é eles irem lá em casa e fazerem alguma besteira com meus moleques”, diz o motoboy, que tem três filhos. “Eu aprendi na dor e vejo o quanto minha esposa me dá amor e carinho, então por quê iria me render à coisa que me fez sofrer tanto? Quero recuperar o tempo que não tive com meus filhos, minha mente é outra. Eu vivo para minha família.”

Questionada, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) afirmou que as ocorrências que resultaram em morte durante a operação “são rigorosamente investigadas pela DEIC de Santos e pela Polícia Militar”.

“As denúncias citadas pela reportagem também são alvo de apuração pelas corregedorias das polícias e do Ministério Público”, diz a SSP. A secretaria afirma que, após a operação houve redução nos registros de roubos, furtos, homicídios dolosos e estupros, e que “4.960 infratores foram presos e apreendidos na região, 547 armas de fogo ilegais foram retiradas das ruas”.

FAMÍLIA CONTESTA VERSÃO DA PM

No caso de outro sobrevivente da Escudo, a palavra dos policiais serve de base para uma denúncia por porte ilegal de arma de fogo. O acusado, um jovem de 25 anos que mora em Santos, diz que estava a caminho da creche para buscar sua sobrinha quando viu mulheres e crianças correndo na rua. Eram 16h do dia 28 de agosto.

Ele conta que correu ao ver a confusão e escutou uma ordem de parada dos policiais. Quando levantou as mãos, ouviu três disparos e foi atingido por um deles —que atravessou sua axila esquerda. Ele afirma que, segundos após cair no solo, viu um policial tirar uma arma de dentro do colete e sinalizar aos colegas que tinha “desarmado o suspeito”.

A versão contada no BO é que policiais do 11º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia), de Ribeirão Preto, viram um suspeito correndo com uma arma na mão, apontando-a na direção de outra equipe da PM. Um policial conta que atirou duas vezes, dizendo “largue a arma”.

O jovem ficou ferido no solo por cerca de 1h30, e foi levado ao pronto-socorro após a própria família providenciar uma ambulância. Quando uma perita da Polícia Científica chegou ao local para analisar a cena, a pistola Taurus calibre 765 atribuída ao suspeito não estava mais ali. Foi entregue pelos PMs na delegacia onde o caso foi registrado.

O boletim mostra que uma mochila, munição de calibre 38 —diferente da arma que é atribuída a ele— e itens supostamente usados para embalar drogas foram encontrados a 30 metros de distância do ponto onde ele caiu ferido.

A polícia afirmou que os apetrechos eram dele, e a Polícia Civil decretou sua prisão em flagrante inclusive por tráfico de drogas, sem que nenhum entorpecente tivesse sido encontrado. Mais tarde, a Justiça desconsiderou as acusações relacionadas a tráfico de drogas, mas manteve as acusações por porte ilegal de arma de fogo.

Nenhuma testemunha confirmou a versão dos policiais, e a arma não passou por qualquer exame para procurar as impressões digitais do suspeito. Questionada sobre a denúncia, a 21ª Promotoria de Justiça de Santos respondeu que “o MPSP está trabalhando na colheita de prova, o processo continua em andamento”.

*

CRONOLOGIA DAS OPERAÇÕES ESCUDO E VERÃO

27.jul.2023: Morte do soldado Patrick

O soldado Patrick Bastos Reis, 30, é morto com um tiro enquanto fazia patrulhamento no Guarujá, no litoral paulista. O governo anuncia uma megaoperação com agentes de 15 batalhões para o dia seguinte, em resposta ao ataque, e tem início a primeira Operação Escudo.

30.jul.2023: Denúncias de abuso policial

Como mostrou a Folha, começam as primeiras denúncias de morte de inocentes desarmados pela PM. Moradores da região também relatam ameaças a moradores e que casas foram invadidas por agentes encapuzados. Em quatro dias, 12 pessoas são mortas pela polícia.

5.set.2023: Fim da 1ª fase da Escudo

O governador Tarcísio de Freitas anuncia o fim da Escudo. A operação aquela altura havia deixado 28 mortos e era a operação oficial da PM que mais matou desde o Carandiru.

8.set.2023: Sargento aposentado é morto; tem início a 2ª fase da Escudo

O sargento aposentado Gerson Antunes Lima é morto na frente de casa em São Vicente, e outros PMs são atacados nos dias seguintes. Uma nova operação Escudo é acionada, e oito pessoas são mortas pela PM em 13 dias. A operação dura até o fim de setembro.

26.jan.2024: Morte do soldado Marcelo

O soldado Marcelo Augusto da Silva é morto a tiros na rodovia Imigrantes. Lotado em um batalhão na zona leste da capital, e estava reforçando o efetivo policial do litoral; uma nova Operação Escudo é anunciada na região.

2.fev.2024: Morte do soldado Cosmo

Uma semana após a morte de um soldado, a PM tem nova baixa no litoral. O soldado Samuel Wesley Cosmo, da Rota, é morto durante uma ação numa favela de palafitas. O governo paulista promete ir atrás do criminoso.

3.fev.2024: O dia que a PM mais matou na Baixada Santista

No dia seguinte à morte do soldado Cosmo, sete pessoas são mortas pela PM na Baixada Santista. É o dia com maior letalidade policial em 11 anos, desde o início da série histórica. Até ali, a operação em andamento ainda era chamada de Escudo pela gestão Tarcísio.

7.fev.2024: Morte do cabo Silveira

Um policial militar morre e outro ficou ferido em Santos, levando à terceira morte de policial na região em menos de duas semanas; Tarcísio transfere a cúpula da Segurança Pública para a Baixada Santista.

8.mar.2024: ‘Não tô nem aí’

O governador Tacísio de Freitas diz que não está “nem aí” para denúncias de abusos cometidos por policiais militares nas operações, feitas por entidades à ONU. A operação, que passou a ser chamada de “Verão” pelo governo algumas semanas antes, vivia um período de dez dias sem vítimas. As mortes recomeçaram no dia seguinte à declaração.

27.mar.2024: Morte de Edneia, mãe de 6 filhos

Edneia Fernandes Silva, 31, é morta com um tiro na cabeça durante uma ação policial em Santos. Mãe de seis filhos, ela é a segunda mulher a ser morta em operações na região. O governo levaria três meses para reconhecer que o tiro que a matou partiu da polícia.

1º.abr.2024: Fim da Operação Verão

O fim da operação é anunciado pelo governo com um saldo oficial de 56 mortes. Na prática, o anúncio significa o fim do deslocamento de batalhões de fora da Baixada Santista para reforçar o policiamento local. Um efetivo de 341 policiais a mais passa a ficar permanente na Baixada

TULIO KRUSE / Folhapress

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