Stedile viveu reinvenção do MST após desilusão com PT e prevê mais ocupações

As trajetórias de João Pedro Stedile, 70, e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que completa 40 anos neste mês de janeiro, se entrelaçam de maneira inseparável. “Não tenho uma história individual”, diz Stedile à Folha na sede nacional no movimento, localizada na região central de São Paulo.

O sobrado foi comprado com recursos da venda do livro “Terra”, de 1997, no qual Sebastião Salgado retratou a vida dos sem-terra do país. As fotografias mais impactantes foram feitas nos dias que sucederam o Massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, em 1996, quando 19 sem-terra foram assassinados por policiais militares.

O fotógrafo viajou para o Norte após Stedile ceder a ele seu lugar em um avião fretado pelo PT. “É mais importante você fotografar a chacina do que eu ir lá como dirigente”, reproduz Stedile, lembrando o que teria dito a Salgado, que cederia os direitos autorais do livro ao movimento.

A passagem é ilustrativa da maneira como Stedile tem exercido sua liderança no MST: uma presença em todos os momentos decisivos, mas sem alarde. Não à toa, ele é chamado com frequência de “presidente do MST”, cargo que não existe na estrutura. Em 2015, Lula (PT) se referiu ao movimento como “exército de Stedile”. Ele é, na verdade, um dos coordenadores nacionais do grupo.

A posição de relevo que ocupa, no entanto, o joga no centro de um conflito com o governo Lula. Em dezembro, ele classificou 2023 como o pior em número de famílias assentadas em 40 anos, repetindo acusações que fez em outras gestões petistas, e foi rebatido pelo ministro Paulo Teixeira (PT), do Desenvolvimento Agrário. Protagoniza, assim, mais um capítulo das relações ora de confronto, ora de aproximação com políticos petistas.

João Paulo Rodrigues, dirigente nacional do MST, descreve Stedile como franciscano: não tem casa própria, carro ou celular. Tem um computador de mesa, que utiliza para enviar emails, e evita eventos com muitas pessoas.

Sob essa postura, Rodrigues e diversos outros enxergam na figura de Stedile a confluência das linhas de orientação do MST, como a autonomia (sem submissão a partidos), a cautela (contra ocupações incertas) e a priorização das bases (os assentamentos estão articulados a direções estaduais e nacional, mas são independentes). Quando saiu desses trilhos, o MST se complicou, afirmam.

Em livros, artigos e entrevistas, Stedile sistematizou uma leitura histórica do MST inspirada na teoria marxista e na Teologia da Libertação, corrente progressista da Igreja Católica, cujos traços são reconhecíveis nas bandeiras e práticas do movimento.

A ênfase na família (em detrimento de indivíduos) como base da mobilização, o entendimento dos assentamentos como espaços de disciplina e de sociabilidade (onde os membros são obrigados a seguir regras rígidas e a estudar) se somam a críticas à burguesia e ao capitalismo.

Filho de pequenos agricultores, Stedile nasceu em dezembro de 1953 em Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul. Formou-se em economia na PUC-RS e, durante a faculdade, passou em concurso para trabalhar na Secretaria da Agricultura do estado.

Entre 1978 e 1979, teve participação decisiva nas ocupações das granjas Macali e Brilhante, reconhecidas como os embriões do MST.

Na ocasião, indígenas kaingangs expulsaram agricultores da reserva de Nonoai, no norte gaúcho. Stedile então convenceu os camponeses a não atacar os indígenas, mas ocupar as fazendas que estavam em terras públicas que haviam sido ilegalmente arrendadas para latifundiários locais –ele sabia disso devido ao seu trabalho no governo estadual.

A ação marcou a retomada da mobilização camponesa no país após a interrupção imposta pelo golpe militar de 1964 e lançou as bases do MST, que seria fundado em Cascavel (PR) em 1984. Nesse momento, diz Stedile, a visão do movimento ainda era estreita. “Achávamos que bastava terra para quem nela trabalha, para sair da pobreza.”

Com o tempo, o diagnóstico ganhou densidade, e ele argumenta que as soluções dos anos seguintes foram os grandes acertos em quatro décadas: a organização da produção para o mercado, as escolas nos assentamentos, a defesa da agroecologia.

Stedile tornou-se o principal articulador político e porta-voz do MST, e foi incumbido da tarefa de levar as pautas dos sem-terra para parlamentares e chefes de Executivo.

No caso dos governos petistas, vistos como aliados, a relação tornou-se motivo de tensão. Em alguns momentos, a proximidade gera críticas a uma suposta leniência do MST. Em outros, os protestos são encarados por petistas como traições. Fora do campo progressista, o PT é criticado quando acena aos sem-terra.

Nos governos Lula 1 e 2 (2003-2010), a promessa de campanha da reforma agrária foi abandonada. O PT acenou com a meta de assentar 500 mil famílias (em 1994, eram 800 mil; em 1998, 1 milhão), mas depois a retirou do programa de governo. Em 2007, Stedile chegou a dizer que o MST havia se iludido com Lula. Dois anos depois, os sem-terra invadiram o Ministério da Fazenda e entoaram cânticos: “Lula, lá, o que aconteceu? Cadê a reforma agrária que você nos prometeu?”.

Ainda assim, os governos Lula tiveram 20% menos ocupações do que os de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Os tucanos atribuíram o dado a uma suposta postura chapa branca do MST com o PT.

Com Dilma Rousseff (2011-2016), os assentamentos despencaram para patamares inferiores aos das gestões do PSDB. O desencantamento promovido pelos mandatos petistas aliados cristalizou uma mudança nas concepções de Stedile e do próprio MST.

O sonho da reforma agrária clássica, baseada em aliança com os setores industriais mais progressistas para superar o atraso no campo, havia morrido. Seu espaço, então, deveria ser tomado por um programa de reforma agrária popular, alicerçado no desenvolvimento agroecológico e em um embate contra o latifúndio e as empresas transnacionais.

“A reforma agrária popular é no sentido de que ela deixou de ser apenas uma reivindicação dos agricultores pobres. Tem que ser um programa que atenda a todo o povo brasileiro, e não apenas aos que se envolvem no trabalho da terra. Incluímos a defesa da natureza, da água, do reflorestamento”, afirma.

Acrescentaram também a agroindústria, que amparou o MST na sequência dos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), diante do esvaziamento de projetos de reforma agrária e de agricultura familiar. Diante do temor da violência, com os discursos de Bolsonaro que incentivavam o uso de armas no campo, o MST recomendou aos sem-terra que evitassem ocupações com potencial de conflito.

Ao voltar-se para dentro, o MST organizou suas cadeias produtivas, chegou a 185 cooperativas e firmou-se como referência na produção de arroz orgânico, leite e suco de uva. Em 2015, fez a primeira Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo; em 2023, 300 mil pessoas passaram por ela. Em 2016, criou a primeira unidade do Armazém do Campo, também na capital paulista, onde vende os seus produtos. Hoje, já são 34 lojas físicas.

No período em que recuou das ocupações, passou por um “rebranding” e vendeu milhares de bonés, camisetas e bandeiras.

Ainda assim, a política de ocupações não pode ser abandonada, afirma o líder do MST. A pressão nos governantes deve ser constante. “Não há, na história da reforma agrária do mundo, nenhum processo de correção das distorções fundiárias sem que a população se mobilize. Em nenhum país do mundo o governo resolveu ‘ah, onde é que tem sem-terra? Vou dar terra para vocês'”.

No contexto em que os movimentos sociais se viram encalacrados sob Bolsonaro, abraçar novamente Lula em 2022 foi uma decisão natural, diz Stedile. Mas sem as ilusões do passado.

“Era uma questão de salvar a democracia. Nunca nos envolvemos na campanha do Lula imaginando ‘agora a reforma agrária vai’”, afirma. Ainda que as expectativas fossem baixas, os desentendimentos logo renasceram.

Em abril do ano passado, a ocupação de um terreno da Embrapa em Pernambuco irritou o governo Lula. A ação contrariava o discurso do movimento de que só ocupa terras improdutivas. Do lado do MST, avolumam-se críticas à morosidade na política de assentamentos e na compra de produtos da agricultura familiar.

Em 2024, as ocupações devem aumentar, prevê Stedile. E não será por uma decisão do movimento, mas pelas dificuldades dos sem-terra.

“Se o governo não toma a iniciativa, a crise capitalista continua se aprofundando. O ser humano não é igual ao sapo, que o boi pisa e ele morre sem dizer nada. Vai haver muito mais luta social”, completa.

Para o próximo ciclo, Stedile traça um desafio a ser encarado pelo MST: “a nova geração de jovens militantes está demorando a se constituir com têmpera, com vontade”.

“Quando eu era jovem, a turma que ia organizar a ocupação ia naquele espírito da vontade, da coragem. Não ganhava nada com os outros. Era ajudar os pobres a se libertarem. A nova militância está mais acomodada. Já consegue entrar na universidade. O jovem sem-terra ou assentado está mais vagaroso para as atividades militantes. Mais influenciado pelas redes sociais”, arremata.

GUILHERME SETO E NICOLLAS WITZEL / Folhapress

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