BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Na madrugada de 2 de abril de 1964, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, foi acordado com um telefonema para que comparecesse à Câmara dos Deputados.
Ele foi informado de que o motivo era para que tomasse conhecimento de fatos políticos que, mais tarde, descreveu como “sobrenaturais”.
Da Câmara, seguiu para o Palácio do Planalto e participou da cerimônia em que o então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vago o cargo de presidente da República e empossou Ranieri Mazzilli, o presidente da Câmara, até a eleição indireta do general Castello Branco.
A decisão de Ribeiro da Costa de participar desta cerimônia ajudou a dar um verniz de legalidade ao golpe. O episódio afrontava a Constituição vigente à época, de 1946, segundo acadêmicos do direito e historiadores.
A Constituição previa que só podia haver o afastamento de um presidente da República por renúncia, impeachment ou ausência do país sem autorização do Congresso -e, na ocasião, João Goulart estava em Porto Alegre.
A postura inicial do Supremo, de conivência com o movimento golpista, se transformou após uma série de atritos com o regime militar. Em 1965, a ditadura aumentou o número de ministros que compunham a corte de 11 para 16.
Já em 1969, após o AI-5 (Ato Institucional nº 5), foram aposentados compulsoriamente três ministros, e outros dois renunciaram ao cargo, em solidariedade.
À época em que a vacância da Presidência foi declarada, Ribeiro da Costa afirmou que fora “numa conjuntura extrema e decisiva”.
Ignorando que Goulart estava no Brasil, o então presidente da corte disse que o país iria se expor a “incertezas inconciliáveis com a ordem legal” se o cargo de presidente da República “não fosse, desde logo, ocupado pelo seu detentor constitucional”.
“Estou certo de que a alternativa política exigia a realização imediata daquele ato que veio a propiciar a estabilidade constitucional, legítima e incontestável, oferecendo a oportunidade, num ambiente tranquilo, para a escolha do sucessor do presidente João Goulart, que surpreendentemente abandonara o alto posto evadindo-se do território nacional”, afirmou ele.
Após a edição do primeiro Ato Institucional, Castello Branco, recém-empossado, visitou o STF em 17 de abril. Além de ter conversado com o presidente da corte, também falou com os ministros tidos como de esquerda, como Evandro Lins e Silva -mais tarde, um dos aposentados compulsoriamente pela ditadura.
“Nesse primeiro momento do golpe, não houve nenhuma reação do STF. Ao contrário. O STF saudou e aprovou o golpe de Estado”, diz Mateus Gamba Torres, professor do Departamento de História da UnB (Universidade de Brasília).
“Lins e Silva é um grande jurista, mas nesse momento comete um erro que um ministro do STF não pode cometer. O grande medo dele era o de ser cassado”, diz Torres.
“Nessa reunião, a primeira visita oficial do Castello Branco ao STF, a preocupação era como ele [Castello] iria tratá-lo [Lins e Silva]. Depois, ele ficou tranquilo e tocou o barco.”
Para Álvaro Palma Jorge, professor da FGV Direito Rio, houve um processo dinâmico na relação entre o Judiciário e os outros Poderes à época e “não dá para dizer que o Supremo, no distanciamento que teve com a mudança de regime, estava sozinho no Brasil”.
“Mas dá para dizer que a participação do presidente do Supremo na declaração de vacância e a posse do presidente da Câmara foram um erro histórico porque a posse claramente contrariava o texto constitucional vigente”, afirma.
Os atritos do regime com a corte se iniciaram, especialmente, quando houve seguidas concessões de habeas corpus para adversários políticos do regime militar.
O STF deu esse tipo de decisão, por exemplo, para o então governador de Goiás, Mauro Borges, e o de Pernambuco, Miguel Arraes. No caso de Goiás, o Executivo iniciou intervenção federal no estado logo após a concessão do habeas corpus.
Iniciou-se à época uma discussão a respeito da possibilidade de aumentar o número de ministros do Supremo, e a corte reagiu no sentido de entender que a mudança não poderia acontecer por iniciativa de outros Poderes. A previsão legal no período era que a mudança no número dos integrantes da corte tinha que ser proposta pelo próprio STF.
Em 20 de outubro de 1965, Ribeiro da Costa publicou na Folha de S.Paulo um texto no qual fez crítica à possibilidade de mudança no Supremo, afirmando que isso seria uma imposição que traria “despesa inútil e incalculável”.
Em resposta, o general Costa e Silva, então ministro da Guerra e futuro presidente, disse em discurso em Itapeva (SP) que uma “histórica agressão” acabava “de ser dirigida aos militares do Brasil pelo presidente do Supremo Tribunal Federal”.
Em 27 de outubro, foi editado o Ato Institucional nº 2, que aumentou a quantidade de ministros do Supremo de 11 para 16, e é considerada a maior intervenção até então da ditadura no Judiciário. Os militares usaram como justificativa para a criação das novas vagas o crescente número de demandas na corte.
Após a decretação do AI-5, que inaugurou o período mais rígido da ditadura militar, três ministros foram aposentados compulsoriamente em janeiro de 1969: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade, renunciaram o então presidente da corte, Gonçalves de Oliveira, e o decano, Lafayette de Andrada.
“Do final de 1968 para frente, não faz mais diferença. Só faz sentido discutir independência de Poderes e democracia em um regime que não seja de absoluta ditadura”, afirma Álvaro Jorge.
A professora de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Heloisa Câmara afirma, porém, que até então, não há como afirmar que o STF foi subserviente à ditadura e nem um foco de resistência.
“Inicialmente, é uma relação de convivência. Depois é que vai ter um certo atrito”, afirma. “Não dá para contar a história da instituição tratando o STF como o grande herói nem como o grande omisso [no início da ditadura].”
JOSÉ MARQUES / Folhapress