BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O STF (Supremo Tribunal Federal) e o STJ (Superior Tribunal de Justiça) concederam nas últimas décadas mais de 15 habeas corpus para apontados como integrantes da cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro.
Homens considerados como os principais bicheiros do estado já foram presos em operações desencadeadas pela Justiça fluminense. No entanto, parte das investigações foi anulada ou os maiores alvos acabaram soltos por decisões dos dois tribunais em Brasília.
Eles costumam contratar alguns dos advogados mais renomados e bem pagos do país, que apontam inconsistências em decisões de instâncias inferiores e conseguem reverter as derrotas nas cortes superiores.
Procurados pela Folha de S.Paulo para comentar as decisões, o STF e o STJ não responderam.
A reportagem também questionou os advogados que representam os suspeitos nos tribunais superiores sobre as suspeitas de ligação de seus clientes com o jogo, mas eles responderam que trataram apenas das questões formais jurídicas e que não entraram no mérito das acusações.
Os advogados nas instâncias inferiores não foram encontrados ou não responderam aos questionamentos. Nos processos, os acusados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro de liderar a contravenção no estado negam participação no jogo do bicho e afirmam que não há provas contra eles.
O levantamento da Folha de S.Paulo considerou apenas ordens judiciais em favor dos apontados como integrantes da cúpula da contravenção. Recentemente, minissérie lançada pelo Globoplay mostrou as brigas entre as famílias que comandam o jogo, a relação deles com o Carnaval do Rio e a trajetória da maioria dos chefes que foram beneficiados pelas duas cortes mais importantes do país.
Há diversas decisões dos dois tribunais nesse sentido. Em algumas situações, as cortes chegaram a conceder liberdade aos suspeitos sem que a defesa fizesse o pedido.
Em 2008, por exemplo, Rogério Andrade apontado atualmente como principal chefe do bicho no Rio estava preso havia dois anos e pediu ao STJ a transferência do presídio de Campo Grande (MT) para o de Bangu 1 (RJ). No fim das contas, ele foi beneficiado por um habeas corpus de ofício quando não há pedido do Ministério Público ou da defesa e deixou a prisão. A Sexta Turma do STJ não reverteu a decisão individual do então ministro Paulo Gallotti.
Também há casos em que as cortes concederam liberdade a foragidos da Justiça. Em 2012, o ministro Sebastião Reis, do STJ, aceitou um recurso da defesa e permitiu que fossem postos em liberdade Anísio Abrahão e Luizinho Drumond sob o argumento de que as prisões tinham sido decretadas com fundamentações genéricas. Drumond estava foragido quando foi beneficiado pela ordem judicial.
O mesmo tribunal, em 2022, revogou a prisão preventiva de Bernardo Bello, apontado pela Promotoria como um dos principais contraventores naquela época. Ele havia sido preso na Colômbia, onde passava férias.
Além das decisões favoráveis à cúpula da contravenção, há ordens judiciais do STF e do STJ envolvendo nomes de pessoas suspeitas de ligação com o jogo do bicho mas que não têm a mesma relevância e poder no esquema criminoso.
Em 2022, por exemplo, o ministro Kassio Nunes Marques, do STF, mandou soltar o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Allan Turnowski, preso sob acusação de envolvimento com a contravenção. O magistrado também pôs em liberdade o sargento reformado da Polícia Militar do Rio Márcio de Souza, acusado de ser o chefe da segurança de Rogério Andrade.
As decisões do ministro chegaram a ser referendadas pelos colegas. A concessão de habeas corpus a Rogério Andrade enquanto ele estava foragido é um exemplo nesse sentido.
A Justiça do Rio de Janeiro mandou prendê-lo preventivamente em março de 2021 por suspeita de envolvimento na morte do bicheiro Fernando Iggnácio. A suposta briga entre os dois teria surgido devido à disputa pelo espólio de Castor de Andrade, que morreu em 1997 e era um dos principais bicheiros do estado Rogério era sobrinho, e Iggnácio, genro dele.
No início de fevereiro de 2022, a 2ª Turma do STF referendou a decisão de Nunes Marques, com votos favoráveis de Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça. O colegiado determinou a suspensão do processo contra Andrade pela morte de Iggnácio.
“A despeito da descrição normativa atrelada ao ora denunciado, a peça acusatória em momento algum narra qualquer outra circunstância ou elemento hábil à caracterização do crime, é omissa com relação aos demais supostos integrantes da quadrilha, é omissa em descrever minimamente um suporte fático que autorize ao menos a inferir a estabilidade e permanência da suposta associação criminosa”, afirmou Lewandowski.
Mendonça, por sua vez, citou inconsistências na atuação das instâncias inferiores e disse que a investigação pode ser retomada caso respeite as balizas legais.
“O fato de nós acolhermos a tese do impetrante e o fazendo, para determinar o trancamento da ação penal correspondente nesse caso específico, não significa que as autoridades investigativas elas não possam, à luz de novos elementos que venham a ser identificados, rever a questão e aí sim formular tanto o indiciamento apropriado como uma eventual denúncia apropriada, com a devida descrição narrativa dos fatos e do real envolvimento ou não de uma determinada pessoa em um crime específico”, disse.
Apenas o ministro Edson Fachin ficou vencido ao defender a manutenção da ordem de prisão, sob o argumento de que não caberia ao STF julgar o caso naquele momento porque ainda existia pedido da defesa para ser analisado por instâncias inferiores da Justiça.
As decisões em favor da cúpula do bicho não são de hoje.
Em 1994, o STF anulou uma condenação de seis anos de prisão contra Paulinho Andrade por formação de quadrilha armada. No ano seguinte, o STJ autorizou seu pai, Castor, a cumprir pena em prisão domiciliar, com obrigação de se apresentar ao juiz a cada 15 dias. O tribunal afirmou que ele não poderia ter na prisão o tratamento adequado para sua cardiopatia (doença no coração).
RELEMBRE ALGUNS CASOS
1994
STF anula condenação contra Paulinho Andrade por formação de quadrilha armada. A defesa dele, representada pelo advogado Nélio Machado, disse que ele não integrava nenhuma organização criminosa e, por isso, deveria ser solto. Os advogados afirmaram que ele não participava da contravenção e que trabalhava como engenheiro.
1995
Andrade continuou preso porque restava uma prisão preventiva decretada contra ele sob acusação de comandar o jogo do bicho de dentro da prisão. O STJ, no entanto, concedeu habeas corpus e mandou liberá-lo.
1996
O STJ permitiu que Castor de Andrade, chefe do jogo na época e pai de Paulinho, cumprisse pena em casa. A corte entendeu que Andrade não teria tratamento adequado na prisão para uma doença no coração e concedeu habeas corpus.
A defesa de Castor afirmava à época que ele era perseguido, conforme entrevista do advogado Wilson Santos à Folha em 1994. “A Justiça do Rio acha que a prisão do Castor vai acabar com a criminalidade do Brasil e até do mundo todo. Castor sofre uma perseguição inominável.”
2007
O ministro Marco Aurélio mandou libertar Nagib Teixeira Suaid, acusado de ser o tesoureiro de Anísio Abrahão e capitão Guimarães. Em 2009, a 1ª Turma do STF confirmou a decisão do ministro, com votos favoráveis de Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
O advogado Bruno Rodrigues, que fez a defesa de Nagib, afirmou no habeas corpus que houve “indevida reiteração de prisões imotivadas” que configuraram “verdadeira crueldade”. Também disse que a decisão que decretou a detenção preventiva “desatende preceitos fundamentais, a norma do Código de Processo Penal”.
2008
Preso em 2006 sob acusação de formação de quadrilha e contrabando, Rogério Andrade foi liberado pelo STJ. Ele havia pedido apenas a transferência do presídio de Campo Grande, em Mato Grosso, para Bangu 1, no Rio de Janeiro, mas foi beneficiado por um habeas corpus de ofício quando não há pedido do MP ou da defesa neste sentido.
O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro afirmou perante o STJ que não havia contemporaneidade entre a data dos fatos de que foi acusado e a prisão preventiva, que é um dos requisitos exigidos pela lei para decretação de prisão antes do encerramento do processo.
2009
Genro de Castor de Andrade e um dos líderes do jogo, Fernando Iggnácio foi condenado por explorar o bicho e também a máfia dos caça níqueis. O STJ, porém, mandou soltá-lo após ficar mais de dois anos preso.
A defesa do bicheiro afirmou que ele sofreu constrangimento ilegal pelo fato de desembargadores terem negado o pedido de redução da pena com base nos antecedentes criminais. Isso porque, documento nos autos apontava o crime de tentativa de homicídio, mas o delito foi julgado improcedente, por falta de provas.
2012
O ministro Marco Aurélio mandou soltar três chefes da cúpula do bicho de uma só vez. Foram beneficiados Aílton Guimarães, conhecido como capitão Guimarães; Antônio Kalil, o Turcão; e Aniz Abrahão, o Anísio da Beija-Flor.
Eles haviam tido a prisão preventiva decretada em 2007, que foi revogada pelo STF. Depois, a juíza do caso condenou eles em primeira instância e determinou nova prisão. Os advogados, porém, afirmaram ao STF que eles não poderiam ser presos naquela etapa processual e tiveram os argumentos acolhidos pela corte.
“Nota-se que a Juíza, em última análise, adota postura de parlamentar, criticando o que considera demora na prestação jurisdicional. E mais: reconhece que a custódia que antes fora imposta resultou de perfunctório exame do feito, vale dizer, aligeirado, de afogadilho”, afirmou o advogado Nelio Machado. ,
2012
STJ manda soltar dois dos principais bicheiros do Rio: Anísio da Beija-Flor e Luizinho Drummond. Luizinho estava foragido quando foi beneficiado pelo habeas corpus.
2012
STF concedeu habeas corpus a Wilson Alves, conhecido como Moisés, que estava preso desde 2010 e havia sido condenado a 23 anos de prisão por contrabando, formação de quadrilha e corrupção ativa.
No recurso apresentado ao Supremo, a defesa dele, representada pela advogada Fernanda Hernandez, afirmou que ele estava preso há um ano e cinco meses e sem que a investigação tivesse sido concluída.
“A situação de prolongamento injustificada da prisão preventiva, medida excepcionalíssima em nosso ordenamento jurídico, resta por se transformar em constrangimento ilegal”, escreveu.
2019
O ministro Ricardo Lewandowski concedeu habeas corpus para que José Escafura, o Piruinha, pudesse recorrer em liberdade porque sua condenação ainda não havia transitado em julgado.
O advogado Nilton Correio afirmou ao STF que seu cliente tinha 88 anos na época e, por isso, parte dos crimes já havia prescrito a contagem de prazo para a terceira idade é reduzida pela metade.
2022
O ministro Kassio Nunes Marques revogou prisão preventiva contra Rogério Andrade, considerado maior contraventor do Rio atualmente, sob acusação de participar do assassinato de Iggnácio. A 2ª Turma do STF confirmou a decisão, com votos de Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça.
A defesa afirmou ao STF, por meio do advogado Ary Bergher, afirmou que não há provas contra Andrade. “A ausência de indícios a subsidiar a acusação emerge sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático probatório”, diz a peça.
2022
O STJ suspendeu a ação penal contra Adilson Oliveira, o Adilsinho, suspeito de ser um dos maiores contrabandistas de cigarros do país e um dos principais parceiros de Rogério Andrade atualmente.
2022
A Sexta Turma do STJ mandou soltar Bernardo Bello, apontado como um dos principais contraventores à época, da prisão na Colômbia em que estava preso sob acusação de ser o mentor da morte de Alcebíades Garcia, outro bicheiro.
À Justiça, os advogados de Bello, Marcos Crissiuma e Paulo Rangel Neto, afirmaram que não há provas que comprometem Bello nem em relação ao assassinato de Bide tampouco em relação à participação com o jogo do bicho.
2023
Nunes Marques mandou liberar o filho de Rogério, Gustavo Andrade, acusado de fazer parte da cúpula do jogo.
MATHEUS TEIXEIRA / Folhapress