Suicídio de cirurgião investigado por morte de criança gera debate sobre saúde mental e papel da polícia e do jornalismo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O caso do suicídio de um cirurgião do Piauí após divulgação do seu indiciamento devido à morte de uma criança decorrente de um procedimento cirúrgico vem causando clamor no meio médico e suscitando debates sobre o papel da polícia e da imprensa nesses casos, e sobre a saúde mental desses profissionais.

Em fevereiro deste ano, uma menina de 6 anos que sofria de insuficiência renal crônica e fazia hemodiálise foi internada no Hospital Unimed de Teresina (PI) com quadro de infecção, sendo necessária a troca do cateter (acesso venoso central) usado no tratamento.

Segundo consta no inquérito policial, uma artéria da criança foi atingida e, horas depois, ela morreu. O responsável pelo procedimento foi o cirurgião pediátrico Eduardo Guimarães Melo, 50.

Nesse procedimento, é introduzida uma agulha na região do pescoço, em uma artéria, a subclávia, localizada embaixo da clavícula, encostada na artéria que sai do coração e bem próxima ao pulmão. O processo é guiado por ultrassom e feito sob anestesia local (com ou sem sedação).

Segundo três cirurgiões ouvidos pela Folha, mesmo seguindo todos os parâmetros e técnicas, nessa passagem pode haver perfuração da artéria ou do pulmão em cerca de 0,1% dos casos. Na maioria das vezes, é um evento adverso reversível, mas pode se tornar fatal em pacientes muito críticos.

Em crianças, os riscos são maiores porque os vasos são mais finos. Nas que fazem diálise, as veias possuem alterações e são ainda mais finas. Elas também tendem a apresentar distúrbios de coagulação. Tudo isso somado pode agravar uma eventual lesão na artéria.

Após representação criminal da família da menina, um inquérito foi instaurado pela Polícia Civil e concluído em 23 de junho, com o indiciamento do médico por homicídio culposo. Cinco dias depois, a imprensa do Piauí noticiou o caso. No dia seguinte, 29 de junho, Melo se suicidou.

Na mesma data, o CRM (Conselho Regional de Medicina) do Piauí e o Sistema Unimed de Teresina emitiram notas de pesar pela morte do cirurgião e com críticas sobre o vazamento de informações do inquérito pela polícia e sobre a cobertura jornalística do caso.

“Lamentamos a falha do dever jurídico de preservar informações confidenciais, assim como a publicação irresponsável e midiática da imprensa local em busca de acessos e likes”, diz a nota da Unimed.

Em resposta, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Piauí e a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) repudiaram a manifestação do CRM, que, na opinião das duas entidades, insinua que a publicação da matéria teria contribuído com a morte do médico, e da nota da Unimed de Teresina. “Trata-se de uma demonstração de desconhecimento do papel dos jornalistas e do processo de apuração.”

Segundo as entidades, a reportagem baseou-se no inquérito policial e procurou o cirurgião para ouvir a sua versão. “Levando em consideração de que os jornalistas têm como compromisso apurar a informação, seguindo todos os preceitos teóricos, técnicos e éticos na sua produção, para bem informar à sociedade, a profissional em questão obedeceu todos os critérios de apuração e escrita.”

No último dia 1º, a Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica (Cipe) emitiu nota em resposta ao posicionamento das entidades jornalística dizendo que elas estavam certas, dentro dos pressupostos jornalísticos de que se tratava de uma notícia sem mentiras, sobre um fato de interesse e que incorporava a manifestação do acusado.

Mas, ao mesmo tempo, também estavam erradas porque “notícias curtinhas, impactantes e pouco profundas podem ser um problema grave”. “Ser chamado de assassino é uma dor imensa para alguém normal. É uma dor pior para alguém que, nem em seus piores pesadelos, desejaria esta morte. E pode, sim, comprovadamente, levar ao suicídio.”

Segundo a nota, a medicina contém incongruências, imprevisibilidades, riscos e individualidades. “Fatalidades raras não são fatalidades inexistentes. Algo que tem um risco de um em mil vai acontecer, quando houver a necessidade de atuar mil vezes.”

De acordo com a associação, a menina não sobreviveria sem ser submetida ao procedimento cirúrgico. “Ela precisava correr o risco do procedimento. Que não era pequeno, no caso deste tipo de cateter, no caso de uma criança pequena e muito doente. Isso é uma ponderação importante, que não apareceu [na reportagem].”

Para a entidade, “um posicionamento jornalístico regrado e formalmente correto pode ser uma agressão e um risco de vida sim, infelizmente, quando submete uma pessoa em estado de sofrimento à execração pública.”

Com a morte do cirurgião, o processo será encerrado.

Segundo César Fernandes, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), a hipótese de erro médico gera muito clamor na sociedade o que, para ele, é compreensível. Mas há um limite entre o erro e o insucesso. “Muitas vezes, isso não é nítido para a família, para as autoridades policiais e para a própria imprensa, que falam de coisas que não estão devidamente apuradas.”

Fernandes diz que não conhecia o cirurgião pediátrico Melo, mas que, pelas informações preliminares, não parece ter havido um erro médico. “Foi um acidente inerente ao procedimento, que pode acontecer. O médico faz todos os procedimentos corretos, dentro da técnica recomendada, e nem sempre tem o desfecho que gostaria.”

“Qualquer intervenção médica é um meio para que se possa atingir um fim, não se pode garantir resultados. Por isso é preciso que o médico deixe claro quais riscos o paciente corre até quando prescreve um medicamento simples”, completou.

Segundo Fernandes, o desfecho trágico do caso também abre uma discussão sobre a saúde mental dos médicos. “Um piloto de avião passa por avaliações periódicas. Eu não vejo essa preocupação com o profissional médico, embora vários estudos mostrem que a incidência de distúrbios não seja pequena.”

Nos Estados Unidos, cerca de 300 a 400 médicos se suicidam por ano, segundo dados da American Society for Suicide Prevention. Entre os fatores de risco estão a síndrome de burnout, que tem hoje uma prevalência de 60% entre os profissionais, e a depressão, com prevalência de 30%. Ambas as condições pioraram após a pandemia de Covid-19.

No Brasil, não há estatísticas confiáveis sobre suicídios entre médicos.

Segundo o psiquiatra Mauro Aranha, que já presidiu o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o suicídio, em geral, é multifatorial, entre eles a solidão. “Muitos médicos vivem em um contexto de isolamento social, têm transtornos mentais, como a depressão, ou características pessoais que o tornaram mais vulnerável ao suicídio.”

No Brasil, a pesquisa “Saúde Mental do Médico 2022”, realizada pela Afya, grupo de faculdades privadas de medicina, com 3.115 profissionais, mostra que quase 70% deles já apresentaram sinais de depressão. Para 26,8%, a condição ainda é uma realidade; 23,4% manifestam sintomas, mas não fazem acompanhamento.

Sinais da síndrome de burnout, caracterizada pelo esgotamento físico e mental intenso, são mencionados por 62%. Desses, 36% ainda não buscaram ajuda.

“O burnout é um primo-irmão da depressão. Se o indivíduo já está fragilizado, trabalhando excessivamente, vai acumulando riscos para a sua saúde mental. O médico aprende desde os bancos acadêmicos que não pode abandonar a trincheira e, mesmo em condições desfavoráveis, continua trabalhando. Ele posterga muito o pedido de ajuda”, afirma Fernandes.

Para Mauro Aranha, a formação do médico não privilegia a sua saúde mental. Nas faculdades, diz ele, há disciplinas que trabalham dilemas como a impotência do profissional diante de uma doença incurável ou da perda de um paciente, mas falta preparo para as situações de crise.

“Ele próprio tem dificuldade para lidar com seus insucessos porque se coloca uma exigência muito exagerada, não se permite o autoperdão. Então, qualquer crítica que venha de fora, da imprensa, uma investigação policial, para ele, é a morte. É um ferimento não só da honra, mas muito do que o impulsionou a ser médico.”

Aranha diz que, pelos processos éticos que acompanhou no Cremesp, é possível traçar um perfil dos médicos que mais sofrem com essas denúncias. “É diligente, estudioso e prudente. Ele entra em crise emocional mesmo.”

Citação [O médico] tem dificuldade para lidar com seus insucessos porque se coloca uma exigência muito exagerada, não se permite o autoperdão. Então, qualquer crítica que venha de fora, da imprensa, uma investigação policial, para ele é a morte Mauro Aranha psiquiatra e ex-presidente do Cremesp **** Para o advogado Henderson Fürts, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o caso do Piauí também demonstra uma dificuldade da sociedade de resolver situações clínicas com desfechos trágicos na esfera cível.

“A área mais agressiva para uma pessoa é o direito penal. A criminalização da medicina, a investigação de um homicídio, ainda que na modalidade culposa, é constrangedora. Dá margem para que qualquer coisa que aconteça numa ciência que é probabilística seja entendida como crime.”

Segundo ele, o Judiciário não tem a percepção de que nem sempre um mau resultado é decorrente de um erro, embora eles também ocorram com frequência.

O advogado afirma que as instituições de saúde também deveriam criar espaços de diálogo e de acolhimento com pacientes e familiares, além de propor acordos indenizatórios quando for o caso. “Muitas vezes, um processo criminal expressa um luto não resolvido.”

CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress

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