BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O ano de 2024 é exemplar de como a existência de eleições não assegura, necessariamente, uma democracia mais sólida. Mais da metade da população global foi às urnas, e o resultado geral confirma o fortalecimento do autoritarismo. Também reforça a perspectiva de um futuro nebuloso e instável.
Dos dez países mais populosos do mundo, apenas China, Nigéria e Brasil não tiveram votação em nível federal. Dezenas de pleitos nacionais foram realizados, além da eleição para o Parlamento Europeu, que manteve no poder o grupo político liderado pela alemã Ursula von der Leyen.
Democracias consolidadas viveram grandes e inesperados solavancos, como a antecipação da eleição legislativa na França. A morte de líderes exigiram votações inesperadas, como no Irã. E graves crises políticas se esparramam para 2025 na forma de novos pleitos, casos de Alemanha e Coreia do Sul.
O ano termina ainda com processos políticos em ebulição na Romênia e na Geórgia, países que transitam entre o debate sobre pertencimento à União Europeia e o passado na órbita da antiga União Soviética e bem por isso têm eleições sob suspeita de interferência da Rússia de Vladimir Putin. A Ucrânia, aliás, não realizou sua eleição em 2024 porque está sob lei marcial em razão do conflito com Moscou.
“Se formos definir em uma palavra, foi o ano da desconfiança. Ou das intercorrências. Os antros do Estado de bem-estar social na Europa estão desmoronando”, afirma Marina Slhessarenko Barreto, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
A Rússia é exemplo de local em que governos crescentemente autoritários se valeram em 2024 da chancela eleitoral, contestada ou com a oposição silenciada, para perpetuar líderes no poder.
Putin foi reeleito com ampla margem, caso também do presidente de El Salvador, Nayib Bukele. O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, enquadra-se no grupo, mas com menos apoio popular e parte da comunidade internacional reconhecendo seu adversário, Edmundo González, como o vencedor.
Nos Estados Unidos, a mais aguardada das eleições levou Donald Trump de volta à Casa Branca. Após campanha atípica e violenta, o resultado consolida a força do principal personagem político da direita radical no mundo.
Agora blindado por um gabinete leal, um Congresso e uma Suprema Corte aliadas, e um Partido Republicano menos resistente a arroubos antidemocráticos, Trump poderá colocar em prática discursos autoritários dentro e fora dos EUA.
“A eleição americana, mas não apenas ela, colocou em questão aquele famoso modelo do eleitor mediano, ou seja, que ganha a eleição um candidato que consiga atrair esse eleitor, que seria moderado”, afirma Thomás Zicman de Barros, cientista político e pesquisador da universidade Sciences Po.
De acordo com o pesquisador, os republicanos tiveram sucesso em algo que, para os democratas, mostrou-se um retumbante fracasso: a capacidade de mobilizar sua base de apoio.
“Se por um lado existe ódio e ressentimento, há também uma dimensão de transformação e esperança no discurso de direita hoje em dia que dá a vantagem de fazer o eleitor querer votar”, diz, citando a redução de votos em Kamala Harris, se comparado à quantidade que Joe Biden recebeu em 2020.
Elogiado por líderes autoritários e da ultradireita global, Trump assume no dia 20 de janeiro, em um momento de franco crescimento dessa ideologia no mundo.
Elon Musk, bilionário anunciado como integrante do governo republicano, tornou-se um ator relevante desse campo político. Dono do X, ele tem se aliado a forças radicais em países europeus, como a Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita ligado a neonazistas, e o Reform, no Reino Unido, legenda de ultradireita liderada pelo parlamentar Nigel Farage, nome mais estridente da campanha pró-brexit.
A própria direita radical, no entanto, é exemplo de como o superciclo eleitoral de 2024 possui nuances e ambiguidades que não permitem uma avaliação unívoca sobre os resultados políticos.
No Parlamento Europeu, a ultradireita se dividiu em três blocos diferentes, e a centro-direita de Von der Leyen seguirá à frente da Comissão Europeia próxima, é verdade, da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, líder de ultradireita que amenizou seu discurso eurocético e emplacou aliados em várias presidências de comissões do Legislativo continental.
Mesmo na França, onde a Reunião Nacional de Marine Le Pen teve grande vitória no pleito para o Parlamento Europeu, a expectativa de que ela vencesse também na eleição legislativa antecipada no país não se concretizou. O partido se tornou a maior legenda da Assembleia Nacional, mas ainda menor que as coalizões de esquerda e do centro governista, e continua como oposição.
Outros exemplos de vitórias agridoces no superciclo eleitoral ocorreram na Índia, na África do Sul e no Japão, onde as forças políticas governistas foram reeleitas, mas perderam poder.
Na Índia, Narendra Modi assegurou o terceiro mandato consecutivo, mas viu a margem de sua legenda diminuir no Parlamento. O mesmo aconteceu com o Congresso Nacional Africano (CNA), sigla de Nelson Mandela que governa a África do Sul desde o fim do apartheid e vai ter de agregar outros partidos em uma coalizão após perder maioria no Legislativo pela primeira vez.
Na via das poucas grandes vitórias da esquerda no ano, há o caso britânico. O pleito nacional terminou com a pior derrota do Partido Conservador em toda sua história, levando os trabalhistas de volta ao poder após 15 anos.
Aqui também a avaliação merece matiz. A plataforma eleitoral do premiê Keir Starmer mirou o centro político e absorveu pautas caras à direita, como austeridade fiscal e controle migratório em um país que ainda rumina os efeitos do brexit, quase dez anos após o plebiscito para deixar a União Europeia.
O México elegeu a primeira presidente mulher de sua história, Claudia Sheinbaum, que sucedeu seu padrinho político, Andrés Manuel López Obrador, e governa com um Congresso ainda mais favorável ao seu partido, o Morena. Analistas esperam ações da nova presidente para confirmar se ela vai aprofundar medidas autoritárias tomadas pelo antecessor.
O ano eleitoral termina com o pleito à Presidência na Croácia, marcado para este domingo (29), após campanha em que a rivalidade entre o atual presidente, Zoran Milanovic, e o primeiro-ministro Andrej Plenkovic tem se acirrado cada vez mais por divergências quanto à Guerra da Ucrânia Milanovic vetou recentemente a participação de tropas croatas em exercícios militares da Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA.
Como o conflito expandido no Oriente Médio, a guerra no Leste Europeu continuará fazendo ondas nas eleições e decisões políticas em 2025.
O maior dos exemplos é a Alemanha. Eleição antecipada pela derrubada do governo de Olaf Scholz tem a centro-direita e a extrema direita como principais candidatas de um país que debate tanto sua vinculação ao conflito na Ucrânia quanto os efeitos de longo prazo de sua política migratória.
A Polônia também vai às urnas em 2025. Vizinho de Kiev, o país tem sido um dos maiores apoiadores da Ucrânia na Europa. O presidente, Andrzej Duda, não pode concorrer novamente.
Na América Latina, a Bolívia terá uma eleição presidencial ensopada pela disputa entre o presidente Luis Arce e seu ex-aliado e padrinho político, Evo Morales. O Equador, palco de grande crise de segurança, terá pleito geral, assim como o Chile. Na Argentina, eleições legislativas para parte da Câmara e do Senado podem mudar o panorama de apoio a Javier Milei.
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ELEIÇÕES COM MUDANÇA DE PODER EM 2024
Estados Unidos
VIROU À DIREITA
Com Trump eleito, o Partido Democrata perdeu a Presidência e também o controle do Senado para o Partido Republicano, que já tinha maioria na Câmara.
Reino Unido
VIROU À ESQUERDA
O Partido Trabalhista obteve vitória esmagadora nas eleições parlamentares, encerrando 14 anos de governo do Partido Conservador.
Portugal
VIROU À DIREITA
Centro-direita vence Socialistas, de centro-esquerda. Cresce a ultradireita.
Panamá
VIROU À DIREITA
Uruguai
VIROU À ESQUERDA
Frente Ampla, de esquerda, derrotou a direita.
Senegal
VIROU À ESQUERDA
Aos 44 anos, Bassirou Diomaye Faye se tornou o líder mais jovem do país africano.
Botsuana
VIROU À ESQUERDA
De centro-direita, o Partido Democrático de Botsuana, no poder havia quase 60 anos, foi derrotado pela coalizão de oposição Guarda-chuva para a Mudança Democrática.
ELEIÇÕES SEM MUDANÇA DE PODER (PARTIDO OU LÍDER PERMANECEU):
México
O partido Morena, do presidente Andrés Manuel López Obrador, conquistou a maioria em ambas as Casas do Congresso e elegeu Claudia Sheinbaum como a primeira mulher presidente do país.
África do Sul
O Congresso Nacional Africano, partido de Nelson Mandela, apesar de não ter conseguido a maioria na Assembleia Nacional pela primeira vez desde o fim do apartheid, continua sendo a maior legenda no Parlamento.
Japão
O Partido Liberal Democrático e seu parceiro de coalizão, Komeito, perderam a maioria no Parlamento, mas ainda governam o país.
Índia
O primeiro-ministro Narendra Modi venceu um terceiro mandato consecutivo, mas foi forçado a formar um governo de coalizão.
Rússia
Vladimir Putin foi reeleito com ampla margem em meio à guerra; pleito foi contestado por rivais geopolíticos e opositores exilados.
El Salvador
Reeleito presidente com mais de 80% dos votos em meio a suspeitas sobre o pleito, Nayib Bukele permaneceu no poder após conquistar quase a totalidade do Legislativo e aprovar reformas que acabam com contrapesos democráticos.
Parlamento Europeu
O grupo político da alemã Ursula von der Leyen, de centro-direita, manteve-se como a maior força do legislativo continental.
Taiwan
Lai Ching-te, candidato mais contrário à China da disputa, venceu e manteve o partido no poder.
Paquistão
Em meio a grave crise econômica e com atentados durante a campanha, o país manteve Shehbaz Sharif no poder.
Bangladesh
Sheikh Hasina conquistou seu quarto mandato consecutivo em pleito boicotado pela oposição, em janeiro. Sete meses depois, em meio a grandes protestos, ela renunciou.
PAÍSES EM CRISE POLÍTICA COM ORIGEM EM ELEIÇÕES OU QUE GERARAM NOVOS PLEITOS
França
MANTEVE
Um pleito antecipado poderia resultar em um governo de oposição ao presidente Emmanuel Macron. O país, porém, viu seu Legislativo se dividir em 3 grupos mais ou menos semelhantes de esquerda, centro e ultradireita e passa por grave crise de governabilidade.
Alemanha
CRISE
Após crescimento da extrema direita em pleitos regionais e crise no governo, país se prepara para novas eleições nacionais em 2025.
Romênia
CRISE
Antes do segundo turno ocorrer, a Corte Constitucional anulou o primeiro turno por suposta interferência externa no pleito candidato de ultradireita e pró-Rússia teve ascensão meteórica não captada por pesquisas.
Coreia do Sul
CRISE
Após derrotas eleitorais, o presidente Yoon Suk Yeol impôs lei marcial, derrubada pelo Parlamento, e sofreu impeachment. Premiê, que ocupava Presidência de forma interina, também foi deposto.
Venezuela
CRISE
O ditador Nicolás Maduro diz que venceu eleição, mas oposição contesta e afirma ter sido ganhadora. A posse está marcada para o dia 10 de janeiro.
GUILHERME BOTACINI / Folhapress