SUS ainda não oferta FIV a casais inférteis quase 20 anos após política de reprodução assistida

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Foram oito anos de espera até Marli Peixoto de Jesus, 33, conseguir chegar a um centro de reprodução humana público e iniciar o processo de FIV (fertilização in vitro) para tentar realizar o sonho de ser mãe.

Por sete anos e meio, ela foi acompanhada em um posto de saúde no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo. Lá, soube que tinha ovários policísticos e o marido, varicocele (varizes nos testículos), duas das principais causas de infertilidade conjugal.

“Sabia que no SUS [Sistema Único de Saúde] seria quase impossível conseguir a FIV. Vivia triste e chorando. Nem acreditei quando me ligaram avisando que eu tinha uma consulta no HM [Hospital da Mulher de SP] para iniciar para o tratamento”, contou ela em 27 de fevereiro, primeiro dia de estimulação ovariana.

No mesmo dia, no centro cirúrgico ao lado, dois embriões eram transferidos para o útero de Ana Patrícia Santana, 39, após uma espera de três anos na atenção primária do município. O marido, Igney Teles Santana, 45, se dizia ansioso. “Eu tô tranquila. Ansiedade eu sentia antes de chegar aqui”, disse Ana.

Quatro décadas após o primeiro nascimento de bebê brasileiro por meio de FIV e quase 20 anos depois do lançamento de uma política nacional de atenção integral em reprodução assistida, mulheres que dependem do SUS para engravidar enfrentam inúmeras dificuldades para ter acesso ao tratamento.

Os obstáculos começam com a pouca oferta de serviços públicos. Apenas dez dos 197 centros de reprodução assistida no país atendem o SUS. Desses, só quatro ofertam tratamento totalmente gratuito. Nos demais, os casais precisam arcar com medicações e outros insumos.

Nas clínicas particulares, um ciclo de FIV pode custar de R$ 25 mil a R$ 50 mil, dependendo dos procedimentos associados. O tratamento também não tem previsão de cobertura pelos planos de saúde. Segundo a literatura internacional, a taxa de gravidez com FIV varia entre 35% e 50%, a cada ciclo, dependendo da idade da mulher.

O estado de São Paulo concentra quatro dos dez centros que atendem pacientes do SUS. Mas somente o Hospital da Mulher (antigo Pérola Byington) e o Hospital das Clínicas de São Paulo, ambos na capital paulista, oferecem o tratamento totalmente gratuito por meio de verbas do governo estadual.

No Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da USP (Universidade de São Paulo), as pacientes precisam pagar a medicação, cerca de R$ 6.000 por ciclo até o mês passado. No serviço de reprodução do Hospital São Paulo, ligado à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), são cobradas as medicações e o meio de cultura utilizado no tratamento, cerca de R$ 16 mil.

Os demais centros que atendem ao SUS ficam em Porto Alegre (RS), com dois centros; Belo Horizonte (MG), Goiânia (GO) e Brasília (DF) e Natal (RN). Nos dois últimos, o tratamento também é gratuito.

Apesar de a FIV estar prevista em política do Ministério da Saúde de 2005, o tratamento não consta na tabela SUS. “Na história dessa política, houve alguns repasses federais pontuais. Tudo o que se tem hoje tudo corre às custas do Tesouro estadual”, diz Morris Pimenta e Souza, diretor-técnico do HM (Hospital da Mulher).

Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, foram realizados 189 ciclos de fertilização in vitro em 2023 no centro de reprodução do HM, a um custo operacional de R$ 4,6 milhões.

“Como hospital público, a gente não deixa a desejar em nada para nenhum serviço de reprodução privada”, diz Nilka Fernandes Donadio, chefe do laboratório de reprodução da instituição.

No centro de reprodução do Hospital das Clínicas de São Paulo, foram 234 ciclos de FIV no ano passado. O valor destinado pelo hospital ao setor de reprodução foi de quase R$ 2,7 milhões. Atualmente, há uma fila de espera de 50 casais.

A realização da FIV nos centros públicos pode demorar de um a dois anos (depois que a mulher já está inscrita no serviço), há limite de idade (em geral, 38 anos) e de tentativas (até dois ciclos FIVs). Na capital paulista, as vagas dos centros do Hospital das Clínicas e do Hospital da Mulher são reguladas pelo Siresp (Sistema Informatizado de Regulação do Estado de São Paulo), antigo Cross.

Segundo o ginecologista e obstetra Edmundo Baracat, professor titular da USP e coordenador da área da saúde da mulher da Secretaria de Estado da Saúde, o governo paulista estuda a ampliação da oferta de FIVs em outras regiões e o aumento da capacidade dos centros já existentes. Não há, porém, previsão orçamentária para este ano.

Baracat afirma que será feito um mapeamento da demanda de casais inférteis e quantos podem ser beneficiados com tratamento de baixa complexidade, como inseminação intrauterina.

“Temos mulher com obstrução tubária que pode fazer uma reanastomose da tuba uterina, as que têm endometriose, podem fazer tratamento. Não exclui a possibilidade de ter que fazer uma FIV, mas há outras opções terapêuticas”, diz.

Na sua opinião, o Ministério da Saúde deveria ser o grande fomentador de uma política pública que garantisse os direitos reprodutivos dos casais que desejam um filho e enfrentam dificuldades. “Tem que ter financiamento.”

Para o ginecologista e professor da USP Rui Ferriani, coordenador do centro de reprodução do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, o acesso é hoje o principal problema da reprodução assistida no país e um dos maiores fatores de exclusão na área reprodutiva.

“Quem tem infertilidade e tem dinheiro, resolve seu problema nas clínicas privadas. Quem não têm, fica frustrada ou vende tudo o que tem para pagar pelos procedimentos.”

Segundo ele, na instituição de Ribeirão, há uma fila de espera de cerca de 350 casais que aguardam até dois anos para conseguir fazer a FIV.

Até o mês passado, os casais pagavam em média R$ 6.000 pelos medicamentos. Segundo Ferriani, a Secretaria de Estado da Saúde prometeu, a partir deste mês, incluir no orçamento do local R$ 3,5 milhões para bancar o custo das medicações.

No centro de reprodução do Hospital São Paulo, os casais que ingressam no serviço primeiro passam por investigação das razões da infertilidade.

Se houver indicação de FIV, o que acontece em 60% dos casos, o casal tem que pagar a internação, a medicação e os custos dos meios de cultura envolvidos, o que dá em torno de R$ 12 mil. “Por não pagarem honorários médicos, fica mais em conta do que no particular”, diz o urologista Renato Fraietta, coordenador do setor integrado de reprodução humana da Unifesp.

O médico diz que desaconselha os casais a vender bens, como o carro, para pagar o tratamento. “Eu sempre falo que não é garantido, a pessoa vai ter no máximo 50% de chance.” Por ano, são realizados cerca de 300 ciclos de FIV no serviço.

Membro da câmara técnica de reprodução do CFM (Conselho Federal de Medicina), Ferriani diz que uma demanda que tem crescido muito é a de mulheres diagnosticadas com câncer e que buscam os centros de reprodução para tentar preservar a fertilidade antes do início da quimioterapia.

Nesses casos, como há grande risco de infertilidade após o tratamento oncológico, a indicação médica é que haja congelamento dos óvulos para serem usados no futuro.

“É uma obrigação o SUS oferecer preservação dos óvulos às mulheres jovens submetidas ao tratamento oncológico. A grande maioria não consegue pagar as medicações [para a estimulação ovariana]”, reforça Ferriani.

O Hospital da Mulher é um dos poucos serviços que oferece o tratamento de graça. Por mês, dez mulheres com diagnóstico de câncer são atendidas por mês e têm seus óvulos congelados.

“São mulheres que teriam o seu prognóstico reprodutivo selado [infertilidade] e aqui elas têm a possibilidade de preservar essa fertilidade. Enche os nossos olhos poder oferecer isso, mas gostaríamos de poder ofertar numa escala muito maior”, afirma Nilka Donadio.

Artur Dzik, diretor do centro de reprodução do Hospital da Mulher, afirma que o direito à reprodução faz parte da cidadania da mulher. “Dá para oferecer dignidade reprodutiva para a paciente SUS. O grande problema é acesso e esse é um problema mundial”

Segundo ele, a necessidade de reprodução assistida tende a aumentar cada vez mais porque homens e mulheres estão mais inférteis por fatores ambientais, como a poluição, e comportamentais, como a obesidade.

“Os problemas clássicos, como a endometriose e os ovários policísticos também tem aumentado. As mulheres estão engravidando mais tarde. Precisamos estar preparados a dar mais mais acesso para esse problema que veio para ficar.”

Em nota, o Ministério da Saúde informou que planeja a formação de um grupo de trabalho interno para a revisão da política de reprodução humana de 2005, com a consultoria e orientação de especialistas da área.

Segundo a pasta, também deverá ser instaurada uma análise de impacto regulatório sobre a temática e a elaborada propostas concretas baseadas nos resultados dessa análise para aprimorar o acesso e a qualidade dos serviços de reprodução humana assistida no SUS.

CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress

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