SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em vez de projetar casas e edifícios, a arquiteta Tamara Klink, 26, decidiu seguir um caminho mais difícil e perigoso. Ela tornou-se a primeira mulher brasileira e a mais jovem navegadora do país a cruzar o Círculo Polar Ártico em uma jornada solo, seguindo os passos do pai, o aventureiro Amyr Klink, 68.
Durante dois meses na companhia de peixes e pássaros, cercada por icebergs, ela percorreu 2500 milhas entre Camaret sur Mer, na França, e Aasiaat, na Groenlândia, a bordo de um pequeno veleiro de aço Sardinha 2, com 10,5 metros de comprimento, preparado para a viagem em uma base francesa ao longo de um ano. Tamara viaja sem acesso à internet, a troca de emails por satélite era restrita à equipe técnica.
Foi mais um desafio superado pela jovem, que tem executado uma missão desafiadora por ano nos últimos tempos. Direto da Groenlândia, ela conta que começou a planejar essa viagem quando tinha 13 anos e estava na Antártica junto com os pais e as irmãs.
“Pensei nisso naquela época e agora, aos 26 anos, 13 anos depois, consegui atingir meu objetivo”, diz. A superação da linha imaginária do Ártico é a quarta viagem solitária de Tamara. Antes dessa aventura, ela atravessou 1000 milhas do Mar do Norte entre a Noruega e a França, em 2020, cruzou 4000 milhas do Atlântico entre a França e o Brasil, em 2021, e viajou 2000 milhas pela costa brasileira de Paraty a Recife no ano passado.
“Viajar sozinha me faz dar o melhor de mim. Sei que se não regular a vela ou verificar a corrente da âncora ninguém vai fazer isso por mim”, afirma. “É um exercício em que estou sempre encontrando novas energias, estímulos e para uma mulher isso é muito motivador.”
A preparação da viagem não foi simples. O orçamento era limitado e ao longo do projeto muitas coisas saíram do planejado. Seu objetivo era iniciar a jornada em maio, mas houve atrasos na instalação da parte elétrica da embarcação, além de imprevistos administrativos e com profissionais que a auxiliavam.
“Acabei viajando cinco meses depois do que pretendia, só deixei a França no meio do verão, o que acabou tornando a navegação diferente do que eu esperava”, conta.
Tamara perdeu, por exemplo, os períodos na Groenlândia em que o sol brilha durante 24 horas e, quando chegou, a noite já durava quatro horas e ganhava 20 minutos diariamente. A parte positiva foi que no fim da estação havia menos icebergs no caminho. “Transformei os inconvenientes em vantagens e ajustei a minha rota para superar os obstáculos”, explica.
“Para correr atrás do tempo perdido, decidi cortar muitas escalas do caminho, fazendo trechos bem mais longos de navegação”, acrescenta.
Segundo a aventureira, o caminho até o círculo polar é uma navegação de risco alto porque percorre regiões onde há perigos o tempo todo. Há icebergs grandes e pequenos que às vezes não aparecem no radar e podem surgir de repente. Ela recebia relatórios diários sobre a posição dos blocos de gelo para garantir sua segurança.
Além disso, ela explica que as cartas náuticas na Groenlândia são muito inexatas, feitas há mais de cem anos, com muitos lugares não cartografados. “Aqui há poucos locais para fazer reparos se houver um acidente ou se acontecer um problema no motor no meio do mar”, diz.
Tamara relata alguns momentos difíceis. Diz que pelo menos uma vez por dia, no seu diário, escreveu que estava com muito medo. Ancorar, por exemplo, era sempre um momento tenso devido à falta de cartas precisas do fundo e à exaustão constante.
Ela considera que o medo faz parte do processo e ela tenta usá-lo como aliado. Diz que é o medo que a faz acordar quando toca o despertador a cada 20 minutos para olhar ao redor, e é ele também que a faz conferir se a âncora está bem presa ao fundo. “É o medo que me desperta se ouço um barulho estranho.”
Ela considera, porém, que a parte mais decisiva do projeto foi a preparação, que pode ser cansativa e desestimulante. “Quando a preparação se tornou difícil, parecia que o barco não ficaria pronto, senti tentação em deixar tudo para trás e desistir”, lembra. “Mas tinha certeza que se desistisse perderia tudo o que investi e meus patrocinadores.” Ela é patrocinada pela Magalu e pela NTT Data.
Tamara começou a escolher um barco para a viagem ao Ártico em 2022, assim que terminou de escrever seu livro, “Nós: o Atlântico em Solitário” (Companhia das Letras), publicado em julho de 2023, no qual narra a viagem de travessia do Atlântico no barco Sardinha 1, de oito metros, aos 24 anos, e conta como se tornou a mais jovem navegadora brasileira a atingir o feito.
“Para o Ártico busquei barcos de alumínio ou de aço, mas o de alumínio que eu queria estava muito além do meu orçamento”, conta. “Acabei comprando um barco de aço na França e tratei de prepará-lo para as regiões polares, o que levou mais tempo do que eu esperava.”
Sobre o pai, ela diz que além de ser uma grande inspiração é uma referência para as suas viagens. Tamara lembra que Amyr Klink foi a Ártico há mais de 30 anos, num tempo pré-internet, sem os equipamentos de comunicação que existem hoje, sem a tecnologia de navegação disponível atualmente e com cartas de papel.
“Sinto-me privilegiada em ter nascido nos tempos atuais até porque, na época do meu pai, uma mulher navegar solitária nestas regiões era ainda mais distante do que é hoje”, afirma. “Quero mudar o imaginário do que uma mulher é capaz.”
Na Groenlândia, Tâmara tem se maravilhado diariamente. No dia dessa entrevista, ela falou sobre a beleza do lugar. Acordou de manhã, olhou o mar e viu que na superfície da água havia uma camada fina de gelo.
“É incrível ver as transformações das estações se tornando concretas e ficar ziguezagueando no meio dos icebergs tabulares, esses icebergs que vem de geleiras, flutuam longas distâncias e são gigantescos, maiores do que quarteirões, do que aeroportos”, conta. “Os icebergs parecem imóveis e de um dia para outro eles mudam de forma, de cor, se inclinam, perdem pedaços. Observá-los é fascinante e viciante.”
Contemplando a beleza da natureza, Tamara concluiu mais uma viagem solitária.
VICENTE VILARDAGA / Folhapress